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Eternos Descaminhos Bacantes

\\ TEATRO

O trabalho desse grupo acontece dentro de um grande movimento, que é o encontro, no teatro, de uma geração com sua própria voz.

Por Bruno Pernambuco


Um dos criadores do Teatro Oficina, Zé Celso (Imagem: reprodução).

É impossível contar em uma linha reta- sóbria, direta- a trajetória do Grupo de Teatro Oficina e de sua maior figura, o diretor, dramaturgo e idealizador José Celso Martinez Corrêa. Sua história é como qualquer uma adaptada pelo grupo- atravessada por intervenções, por criações tropicalistas, arroubos de tragicomicorgia e por momentos momentos marcantes de uma sociedade que a chamada Geração Mimeógrafo- esse grupo de poetas, artistas, musicistas e criadores, dentro do qual Zé Celso despontava como contestador único dos ideais artísticos e sociais- vinha para chacoalhar.


Igualmente, é impossível seguir essa narrativa separando em absoluto passado e presente. Afinal toda intervenção, todo pensamento e a criação que se interponha a qualquer história, nasce a partir desse jogo íntimo dos dois, terras sem fronteira que as delimitem.

Zé Celso nasce em Araraquara, de onde ficam as lembranças da livraria que proporciona o primeiro encontro com Nietzsche e da amizade com Ignácio de Loyola Brandão e com os outros membros do círculo cultural. Assim vem cheio de agitações o jovem que, a princípio, chega na capital para cursar direito no Largo São Francisco- projeto, formalmente, concluído, mas que aos poucos se consolida numa banda secundária da vida, subjugado pelo encontro artístico, que logo tomaria a forma um grupo de teatro à procura de um nome que traduzisse seu ideal, do teatro como um trabalho constante, uma prática da repetição e da novidade, em que a inspiração combina-se à dureza do suor. O trabalho desse grupo acontece dentro de um grande movimento, que é o encontro, no teatro, de uma geração com sua própria voz.


É a hora e a vez dessa geração inquieta, ainda sacudida pela descoberta de um Brasil, dos modernistas, e subitamente despertada com o suicídio de Getúlio- “a morte do pai”, como define o próprio Zé Celso- cuja obra começa a tomar forma, quando surgem os primeiros trabalhos de figuras como Antunes Filho e Antônio Abujamra na direção, o nascimento dos textos de Plínio Marcos, do pensamento de Augusto Boal e da técnica impecável de Cacilda Becker. Esse terremoto artístico acontece em um momento já decorrente do sucesso dos teatros populares, e ajuda a marcar o teatro como local de discussão da vida brasileira, como uma centralidade da vida cultural do país e como formador de imagens que pautavam, nesses anos entre duas sombras autoritárias no poder, a forma como um país refletia sobre si mesmo.

O trabalho de Zé Celso e do Oficina é muito particular, nesses últimos sessenta anos de arte e de cultura brasileira, pelo quanto sincretiza movimentos artísticos de diferentes linhas e diferentes objetos, diferentes tempos da vida social brasileira e diferentes embates que a marcam.


Nos anos 60 o teatro no coração do Bixiga marca-se como abrigo de grandes autores e monumento da contracultura paulistana, na resistência tanto à repressão direta quanto à moral, através dos costumes, como muito bem exemplificado nas montagens de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, em 1967 e Roda Viva, de Chico Buarque, em 1968- essa última, famosamente, palco de uma intervenção direta do Comando de Caça aos Comunistas, que interrompeu uma apresentação- ocorridas já num palco refeito (e no momento em que o teatro decide adotar um esquema de palco italiano, diferenciando-se tanto daquilo que foi quanto do que viria a se tornar), após um incêndio, em 1966, provocado por grupos paramilitares.


O Oficina, tanto em momentos de atividade como de exílio, persiste como imagem da cultura paulistana- como uma entidade artística, devoradora das tradições e das linhagens críticas, e criadora de imagens que buscam ferir com precisão a repressão da cultura geral, e como espaço que representa um modo único de habitar a cidade e, para muitos que dele desfrutam, uma busca por um encontro único.


Com o retorno do exílio dos principais integrantes do teatro, já no final dos anos 70, e o início da abertura democrática do Brasil, são outras forças- ou as mesmas, agora sob um método mais adequado a novos tempos- que tentam coagir a companhia a abandonar seu espaço e seu trabalho, na forma de uma disputa judicial contra a especulação imobiliária liderada pelo Grupo Silvio Santos, que levou a quarenta anos de uma querela que ameaçava efetivamente desfazer o tombamento do espaço do teatro, descontextualizando-o daquela forma única como ele se comunica com a vida em seu entorno.


No trabalho com teatro nenhum momento é tão importante quanto o presente, e nunca se cessa de aprender a crueza dessa lição. Apresentações que mereciam um tempo maior de reflexão, como a grande celebração de O Rei da Vela em 2017, com uma nova encenação, trazendo de volta o elenco original, ou as ideias novas, que nunca cessam no trabalho do teatro, como a estreia de Roda Viva, desta vez como comemoração pela abertura do Parque do Bixiga programada para esse ano- já viraram notícia velha, diante da suspensão do mundo pela pandemia do coronavírus.


Um vírus que, atravessando todo o nosso modo de vida e as formas como se organiza a sociedade, rói também a história- ao menos no Brasil, ou, relembrando ainda mais o impacto do teatro em seu lugar imediato, ao menos em São Paulo, em poucos lugares tanto quanto naqueles espaços carregados da história de companhias teatrais, que se tornam sinônimos dessas mesmas e signo que representa a multiplicidade de todas as histórias ali encenadas- a vastidão de cada uma, como é infinita a imagem teatral, e o encontro de retalhos, unidos por esse espaço, irmãos de rumos totalmente distintos na vida, relembrados de sua relação.


São muitos desses espaços que agora se veem ameaçados, ou diante de uma história nova, do alastramento de uma doença que forçadamente tira do teatro- e do encontro, da algazarra pública, sua razão de ser- a esfera para reflexão dos acontecimentos. Nisso, surgem respostas mil, respostas belíssimas, dos grupos de teatro das mais variadas regiões, histórias e atuações recentes, que comprovam que não existe um jeito único de seguir fazendo teatro quando cai sobre seus criadores, atores e diferentes membros uma separação forçada do palco.


O Teatro Oficina segue, entre ações de crowdfunding, campanhas de divulgação e aparições públicas de Zé Celso, trazendo novas dimensões para as discussões correntemente elaboradas no grupo e pondo à vista outras facetas de seu trabalho e de sua história, também numa nova forma única de diálogo com o público. Ainda que tanto o Oficina quanto Zé Celso tenham que lidar com uma cristalização de uma figura sua no imaginário do público, e com o desafio de fazer do passado algo que chame o novo no presente, é certo que a oficina de ideias continua a trabalhar e ainda tem muito a dizer a celebrar, e que ainda está presente, por mais escondida que seja sob todas as medidas de precaução, a comemoração do encontro com o público, marcada na recriação de um espaço e em sua redescoberta de si próprio.

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