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Foto do escritorBruno Pernambuco

[MiTsp 2020] Esculpir o Tempo

\\ TEATRO

Em sua recusa dessa lógica, Multidão é uma experiência etérea e alucinógena, além de profundamente imersiva.

Por Bruno Pernambuco


O teatro, assim como todas as artes performáticas, é arte do encontro, do ver novamente, do ver de outra forma. O silêncio e o espaço vazio do palco são materiais a partir dos quais cada espetáculo pode esculpir aquele tempo que é propriamente seu- o tempo que tem o seu encontro.


Há muitas formas de trabalhar o que é, na realidade comum, a onipresença do tempo contado, que rege o cotidiano, as normas sociais e, através da concretização nos aparelhos pessoais, também as individualidades. Em sua recusa dessa lógica, Multidão é uma experiência etérea e alucinógena, além de profundamente imersiva. Juntando cacos, a peça parte da situação banal, a rave, para evocar a experiência ancestral- o dionisíaco, a presença do tempo não-cronológico. Faz isso, através da precisão dos movimentos coreografados e da incrível força de seus intérpretes, posta no controle sobre os menores detalhes do corpo e na sincronicidade dos momentos coletivos, com um resultado impressionante. É de fazer chorar a tensão dos corpos que atravessam o palco, meio que coagidos, meio que levados espontaneamente pelo movimento que não tem nominação e nem linguagem. O espetáculo anima-se com a beleza desse trabalho corporal, verdadeiramente emocionante, que acolhe a plateia para dentro daquele universo familiar e, simultaneamente, distante, sem nome, sem tempo e limitado por outras definições. É apenas o corpo que dá a medida da humanidade tanto daqueles que perpassam o palco quanto de quem assiste a ação se desenrolar, e através dela se reconhece.


Se rejeita certa experiência temporal, o espetáculo dirigido por Gisele Vienne também não se presta à forma tradicional da narrativa, nem a uma compartimentação tradicional que fosse conferir, com base no desenvolvimento dos personagens que habitam o palco, àqueles movimentos o caráter de história. Não há definidamente um começo ou fim do espetáculo, mas permanências que cortam esse desfile de miragens que vai se alterando, e que assim se cristalizam como imagens mais significativas daquele texto. Também não é possível separar os sentimentos existentes na cena, como se para disso tirar uma espécie de arco narrativo. A forma livre da estrutura é a tela onde o amor, o tesão, a raiva, o desamor, o abuso, o medo, a alegria, e tantos outros, se fazem presentes simultaneamente, tratando a experiência em sua complexidade total. É isso que faz com que essas cenas da peça funcionem, e com que, apesar de insistir em um mesmo tom da linguagem durante toda a apresentação, Multidão tenha sempre algo novo a oferecer.


A multidão, enfim, forma-se e infinitamente renova-se ao longo do espetáculo. É ela o personagem que está diante da plateia- o único que se apresenta ali, no palco. Mas, assim, o espectador ainda tem a dimensão de uma multidão que se forma, que representa uma soma de partes de existência autônoma (em oposição à experiência corrente, a do corpo social que não é quantificação exata dos seus membros, e que subsiste como entidade total, resistente à setorização de suas partes), portanto afere-lhe de outra forma, questionando sua natureza, assumindo-a sem entender de onde exatamente é que a conhece. É belíssimo como Multidão experimenta com essa construção de sua identidade central, e, na figura do encontro coletivo, na maravilha de suas interpretações, nos sentidos presentes nas imagens extremamente evocativas que seus personagens (ou, melhor dizendo, seus habitantes) passam como que por estações, forma uma experiência única. Uma que, como talvez seja o caso de todas as experiências boas, nenhuma análise é suficiente para descrever inteiramente.


MULTIDÃO (CROWD) - MITsp 2020

(Auditório Ibirapuera)


TÍTULO ORIGINAL: CROWD

DIREÇÃO: Gisèle Vienne

FRANÇA, 2017 | 1h30min | Classificação indicativa: 14 anos

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