\\ CINEMA
Hoje, os filmes priorizaram o lugar de fala das personagens, corpos políticos e narrativas contundentes
Redação, Frentes Versos
RESUMO -- Produzidos entre 2000 e 2019, filmes de temática LGBTQ recontaram ou contaram histórias mal resolvidas de décadas passadas. Hoje, ao invés do cinema reforçar estigmas negativos sobre a comunidade, ao contrário, este cinema humanizou suas personagens, colocando-as em evidência a partir de histórias comuns e com teor político.
São Paulo e Rio de Janeiro -- Em alta nos últimos anos, o cinema LGBTQ não está mais apenas no circuito alternativo do mercado audiovisual. Embora ainda sustente peso significante no nicho, ele foi ganhando, aos poucos, as grandes salas quando passou a narrar problemáticas mundanas, sobretudo, sustentado por histórias que tratam a vida como ela é, sem tantos apelos. No cinema, vê-se hoje um traquejo em produções de vários estilos e que, inclusive, acompanham as discussões sobre debates em voga na sociedade, como, por exemplo, a teoria de gênero.
Ao prezar por histórias de diferentes matizes, as narrativas deixaram de lado estereótipos, antes assistidos a baciadas em filmes besuntados de corpos associados ao pecado. Hoje, os filmes priorizaram o lugar de fala das personagens como corpos políticos, donos de opiniões diversificadas, com suas complexidades e diferentes estéticas corporais, tratando também de “corpos marginais” – fora dos padrões e, por vezes, dentro da fluidez da sexualidade e dos gêneros.
Este cinema floresceu, sobretudo, em capitais como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Com narrativas contundentes, os filmes, para todos os gêneros, vão dos sucessos, dramas adolescentes, como “Me chame pelo seu nome” (2017) e “O mau exemplo de Cameron Post” (2019) a novas narrativas que contemplam o Q da sigla, como o filme chileno, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro (2017), “Uma mulher fantástica” (2017), de Sebastián Lelio e, já nas salas comerciais, “A Garota Dinamarquesa” (2016), cujo o protagonista Lili (Eddie Redmayne) se encontra no olho do furação, ao longo de um processo de transição de gênero, na Paris da Belle Èpoque.
Contudo, para além das questões claramente políticas, o cinema LGBTQ tem começado a explorar histórias comuns, alçadas por protagonistas e elenco que podem ser nossos vizinhos de prédio. Em entrevista, autor de “Além do carnaval” (1999), obra notável sobre a homossexualidade masculina no Brasil, o escritor James Green pontuou sobre a recente pegada deste cinema, antes marcado por estigmas “Infelizmente ainda são os poucos filmes que retratam a vida cotidiana das pessoas LGBTQ em todas as suas variações. Falta retratar o gay ‘comum’ que vive a sua sexualidade com tranquilidade ou com conflitos interessantes, como é o caso do filme “The Cakemaker” (2017), sobre um israelense casado que começa um affair com um alemão quando ele vista Berlim a negócios”.
Exibido no Brasil no circuito alternativo em 2019, “The Cakemaker” foi debatido em março pela Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Lacônico, o confeiteiro do drama israelense tem seus sentimentos temperados por tomadas de cenas cotidianas ligadas ao desejo sexual e, sobretudo, ao paladar. “Mudou a maneira em que as pessoas LGBTQ são caracterizadas. Ultimamente, os filmes ganharam com a exploração da sensibilidade, com variedade em pessoalidades, comportamentos, apresentações. As atitudes da sociedade alteraram estes retratos, pelo menos em parte. ”, completou Green.
A mudança é radical. E às vésperas das comemorações do cinquentenário do movimento “Stonewall”, ao longo de décadas, o cinema LGBTQ abrigou uma série de eventos importantes, retratando episódios especiais que aconteceram no mundo. “A retomada e celebração de “Stonewall” contempla a discussão de um privado que é o político, podemos usar isso para discutir problemas muito além da questão da sexualidade”, afirmou Denilson Lopes, professor de cinema da UFRJ, especialista em cinema LGBTQ, à Reportagem.
Ambientados sob a verve dos anos 1970/1980, filmes como “Milk: a voz da igualdade” (2008) e “The normal heart” (2014) acentuaram o teor político e a necessidade de contestação do status quo da heteronormatividade presente nas esferas sociais daquela época. Histórias reais que cercam as subjetividades dos protagonistas passaram a incrementar os retratos históricos, lidando, nestes filmes, com as questões positivas e negativas do lugar em que o homossexual masculino estava na sociedade e o que ele pensava numa época em que a conquista pelos direitos era (é?) resolvida na rua com protestos memoráveis.
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O que em outros tempos estava fadado à troça do gay afeminado ou ao apagamento de personalidade das personagens LGBTQ, resumindo-os apenas ao plano carnal ou histérico, hoje, embora haja um contraponto com a questão do novo despertar sexual – em que na era dos aplicativos de encontros o culto ao carnal se acentua e, assim, criam-se padrões no próprio meio, sobretudo, gay –, ao mesmo tempo, vê-se perfis psicológicos esmiuçados, saltando, paralelamente, aos debates ligados a outras jeitos e formas de relacionamentos, fomentados pela nova geração, os millennials.
“Nas décadas passadas, os personagens LGBTs eram apagados ou extremamente caricatos, conforme a sociedade foi se inserindo na discussão sobre diversidade, isso mudou, culturalmente também, e o cinema está dentro dessa mudança”, contou o professor de direito da Unifesp e ativista do movimento LGBTQ, Renan Quinalha.
“Esse novo grupo, não só no cinema, hoje conta com a presença maior das minorias; produtores, atores e diretores podem exercer sua sexualidade livremente, e não significa que um ator homossexual não possa viver um papel heterossexual, o contrário também é válido; um dos questionamentos que essas narrativas podem levantar é como se pensar nas práticas afetivas que essas obras podem pôr em pauta”, ressaltou Lopes.
Estando o afeto presente em algumas presenças de personagens, enquanto em “The normal heart” era pungente a tônica de contestação e ânimos acalentados em busca de respostas, foi pelo caminho da ternura que enveredou o longa “O ano de 1985”. Com direção de Yan Tan, recentemente em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo, o drama agudo percorre o processo de reaproximação do protagonista Adrian (Cory Michel Smith), infectado pelo o vírus HIV. De volta à casa do pais, a personagem de Adrian se vê imerso em um processo angustiante de dúvida do diagnóstico.
Ambientado nas festas de final de ano em Forth Worth, Texas, o filme não cita as palavras “Aids” ou “homossexual”. E em nenhum momento trata o protagonista de Smith como um doente terminal – ao contrário, reforça uma vivacidade nos vínculos estabelecidos com o caçula Andrew (Aidan Langford) e velhos conhecidos – como erroneamente pecou-se em inúmeras produções, sobretudo em décadas passadas, quando a Aids ceifava suas vítimas.
“O ano de 1985” é um exercício de escuta.
Fã de Madonna e outros ícones da comunidade LGBT, o pequeno Andrew escuta a rainha do pop às escondidas, pois o pastor da igreja havia queimado todos os discos do vizinho do fim da rua. Adrian, sempre de fones de ouvido, presenteia o pequeno com um vale da Tower Records e um gravador.
Eles se entendem, curtem cinema, música e cultura pop, renasce uma afetuosa relação ali.
Respaldados pelo cotidiano, os diálogos propostos para os atores são poderosos e delicados, mesmo o filme esbarrando em tensões corriqueiras, “Ainda que retratada de forma errada, as questões da Aids e da frustração no amor são temas presentes no meio gay, existem maneiras interessantes de se tratar esses assuntos, sem descambar para o estereótipo, no ‘1985’ a queda do personagem é contemplada de forma simbólica, é um filme lindo”, completou Quinalha.
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Ainda que, majoritariamente, os filmes brasileiros ligados à temática LGBT fiquem restritos a circuitos alternativos e festivais – quando chegam a alguma mídia expressiva –, boas produções têm levantado discussões sobre o papel dessas obras no país, que encabeça as primeiras posições no pódio de preconceito e violência com a comunidade LGBTQ.
Contudo, histórias instigantes foram ambientadas por aqui. Filmes como “Tatuagem” (2013), de Hilton Lacerda e “Corpo elétrico” (2017), de Marcelo Caetano, contam as histórias de jovens; o primeiro, em contato com uma trupe circense – em que o despertar sexual se vê arrastado das tendas improvisadas ao quartel, ao mesmo tempo quando o protagonista interpretado por Jesuíta Barbosa passa por uma metamorfose – e do operário imerso na labuta de uma confecção no bairro do Bom Retiro, em São Paulo – introspectivo, o protagonista, vivido pelo ator Kelner Macêdo, passa a descarregar as energias em cenas de alta voltagem e libido –, respectivamente.
“Eu tinha ficada na casa do coletivo, em 1976, em Olinda, quando estava fazendo a minha primeira viagem pelo Nordeste. Me trouxe lembranças deste período, quando começaram espetáculos que desafiaram a censura com cenas provocantes e sensuais. ”, lembrou-se Green, referindo-se à agitação cultural que o Recife estava, em meados dos anos 1970. “Corpo elétrico foge daquilo que é, muitas vezes, lugar comum em narrativas gays; o cenário do filme é uma fábrica, retratar esse homossexual, da manufatura, foi inovador”, frisou Lopes.
*originalmente publicada às vésperas da comemoração do Stonewall no jornal Contraponto pelo editor de Frentes Versos
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