\\ TEATRO
Se By Heart é extremamente inspirado ao partir dessa interioridade e da interioridade dessa presença que alimenta, o espetáculo também anima-se pela presença constante dessa contradição.
Por Bruno Pernambuco
Vida Difícil com a Memória
Sou um péssimo público para a minha memória.
Ela quer que eu ouça sua voz incessantemente,
mas eu me agito, tusso,
ouço e não ouço,
saio, volto e saio de novo.
Ela requer todo o meu tempo e atenção. Quando durmo, é mais fácil para ela.
De dia já nem tanto, o que a magoa.
Me propõe zelosamente velhas cartas, fotos,
revolve fatos importantes e desimportantes,
devolve a vista para paisagens ignoradas
e povoa-as com os meus mortos.
Nos seus relatos sou sempre mais jovem.
Isso é bom, mas por que sempre essa história?
Cada espelho me dá outras notícias.
Irrita-se quando dou de ombros.
E então vinga-se remexendo todos os meus erros,
graves, mas que já não pesam.
Me olha nos olhos, espera minha reação.
Por fim me consola: podia ter sido pior.
Quer que agora eu viva só para ela e com ela.
De preferência num quarto escuro e fechado,
mas nos meus planos ainda figuram o sol presente
as nuvens atuais, as estradas correntes.
Às vezes fico farta de sua companhia.
Proponho nos separarmos. De hoje para sempre.
Então sorri com complacência,
sabe que também para mim seria uma condenação.
- Wislawa Szymborska
(Para o autor da crítica, um poema de cor)
Memória e cegueira, talvez mais que tudo por sua capacidade de serem opostos, são sinônimos. Toda memória é cegueira ao que habita fora dela, mesmo, e especialmente, o presente, e assim trabalhar a memória é uma proposição delicada a qualquer forma de teatro que se proponha fazê-lo. A lembrança de cor, de coração, é aquela que instintivamente, inconscientemente, reconhece a natureza da memória enquanto invenção, enquanto versão dos fatos acontecidos. É essa memória que, como para a avó de Tiago Rodrigues, é luz em meio à cegueira. Essa memória é a luminescência daquela verdade pessoal, de ecos mais inexpressáveis, que é, por natureza, verdade, sem negar os outros possíveis, como se lhes fosse logica, ou tangivelmente,superior. É, assim, de uma ironia diabólica que essa mesma palavra descreva estados tão opostos, do vigor e do torpor. Se By Heart é extremamente inspirado ao partir dessa interioridade e da interioridade dessa presença que alimenta, o espetáculo também anima-se pela presença constante dessa contradição.
O título realmente cai muito bem à apresentação. É visível que aquilo que dá ao espetáculo sua beleza comovente- quando uma estrutura como a proposta por Tiago Rodrigues frequentemente aproxima-se de uma mecanicidade da atuação e de uma elaboração formal que, acreditando bastar-se, ignora o conteúdo que lhe dá sentido, aquele necessário para que ela seja forma transformadora de expressar alguma coisa- é o fato que o intérprete age de coração. O timing cômico de Tiago Rodrigues é impecável (ou, ao contrário, pecável, por isso mesmo que faz rir), e o humor, no espetáculo, tem o sentido da construção dessa memória compartilhada, é o que nos traz, público-espectador e público-participante, para dentro da história de Cândida, George Steiner, Boris Pasternak e Tiago. O humor é o caminho de desarmar-nos e desnudar o verdadeiro eu- que apresenta-se naquela sensação ruim, no desgosto da consciência ao perceber que essa parte que lhe foge atende ao chamado. Assim, é esse riso que permite o envolvimento, que é, em um nível, ancestral- e que, assim, dá àquela construção de um Soneto Número Trinta o sentido de história.
O espetáculo, é bem verdade, é pensado para o público-espectador, não para aquele público participante, convidado pelo autor, no início da apresentação, a comparecer ao palco. O ridículo desses selecionados, e a cobrança que lhes é imposta, são, também, mecanismos que trazem, na plateia, cumplicidade com o encenador, e nisso são bem-sucedidos. É muito interessante pensar a posição desse grupo meio atuante, meio espectador- não só porque, nesse papel, reproduzem aquele que é o papel de todos que se fazem presentes a um teatro, habitando e não, simultaneamente, aquele mundo. Pode-se perguntar qual é o limite de sua ação, qual o sentido de sua presença se evocam apenas uma representação dos personagens verídicos das histórias memoriosas do ator/diretor/encenador, ou o bem-comportado coral de igreja- em que, a exemplo dos jovens constrangidos ao encontro com os louvores, o alimento, e aquela construção interna, do saber de cor sobre aquilo cheio de alma que é proferido, fica perdido. Até que ponto By Heart pode ser, também, um espetáculo dessas pessoas, além de Tiago, é uma pergunta que fica em aberto- e para a qual, quando é posta, como no momento na apresentação em que uma das participantes indaga sobre a participação de autoras dentro dessa memória, a peça parece virar a cara. Permanece a fábula cativante de Steiner, Pasternak e Ray Bradbury, que conquista o público e, através do ânimo do intérprete, convida para dentro dessa história; no entanto, em momentos como esse, o espetáculo parece se trair, fugindo de sua própria contradição- sem a qual, afinal, não existe memória.
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BY HEART
(Teatro FAAP)
Direção: Tiago Rodrigues
PORTUGAL, 2013 | 1h30min | Classificação indicativa: 12 anos
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