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Em Fun Home, Alison Bechdel esmiúça imperfeições do relacionamento com o pai enquanto caricatura aspirante ao perfeccionismo
Por Matheus Lopes Quirino
Alison está atabafada longe de casa. Típica estudante universitária, tem uma pilha de livros para ler, dos quais um desafio homérico consiste em Ulysses, de James Joyce. Ela tenta, como tantos, manter o fôlego, afinal, sua cruzada é legítima: quer dar este orgulho ao pai, o professor de inglês Bruce Allen Bechdel. No meio do caminho, Alison topa com uma biblioteca mais interessante, seus olhos são vidrados em Nação Lésbica, de Jill Johnston, a Voando, de Kate Millett.
Os livros são o elo mais poderoso entre pai e filha, e durante anos, embora a convivência caótica do lar venha inspirar Fun Home, as referências que o livro brinda o leitor são um verdadeiro compêndio sobre histórias da sexualidade, de Virgínia Woolf a Collete, passando por clássicos gays como Maurice. E não é para menos. “Se já houve uma bicha maior do que meu pai, foi Marcel Proust”. Soa engraçado, e na verdade é sim. Com seu humor aguçado, a cartunista Alison Bechdel vai do clássico ao vulgar em sua novela gráfica. Muito disso deve a seu pai.
Perfeccionista, intelectual, afetado, Bruce está no centro do romance. E entre tantas imperfeições, Alison Bechdel confere ao personagem uma envergadura de anti-herói, evocando o catatau de James Joyce. Eles discorrem um bocado sobre o Magnum Opus do autor de O Retrato de Um Artista Quando Jovem. E Bruce é o anti-herói perfeito. Um pai ausente, maníaco, que mantinha affairs com seus alunos do colegial. Obcecado por organização e decoração, ele soa erudito, embora seja, paradoxalmente, decadente como o casarão em que vive.
Repleto de arabescos e com pé direito alto, a casa colonial é um cenário perfeito para a menina que, desde pequena, foi avessa aos balangandãs e cristaleiras, ao se identificar com um estilo sóbrio, “simplão”, como ela mesmo relata, ao discorrer, por exemplo, sobre as “sapatonas caminhoneiras”. São dois opostos de um mesmo espectro. No arquétipo happy family, tradicional, Alison escapa do modelo ideal de filha. Ele é uma anti-heroína também. Ri quando o pai morre, mas é de nervoso. Pode-se levar a ferro e fogo o lema “tal pai, tal filha”.
Fun Home é um trocadilho bem sucedido no título da novela. Funeral Home, a casa funerária da família Bechdel é sacaneada, como tudo no decorrer da história. O estilo vitoriano de vida que Bruce almeja parece se arruinar. Seu casamento vai morno, até que ele se mata. A versão não é oficial. Mas o homem deixa suas pistas, trechos de livros, com destaque para Em Busca do Tempo Perdido, do próprio Proust.
Alison Bechdel foi considerada uma versão feminina de Woody Allen pelo jornal The Guardian. Evidentemente, o livro tem suas passagens por Nova York – e são marcantes. No final dos anos 1970, a epidemia da Aids já era realidade, e nesse cenário a pequena Alison observava Nova York, nas vezes em que lá estava com o pai. Cosmopolita, Bruce, a bem da verdade, sabia da condição da filha. Ambos são duas espécies de bichos de concha. Vivem encastelados na própria natureza. Alison, aos poucos, vai se descobrindo lésbica, ao passo que a sexualidade do pai, na questão de holofotes, ofusca sim “seu momento”.
Ela não vive exatamente à sombra daquele mito clássico, ele é sua estrela guia, como o protagonista de Joyce. No desenrolar do livro, uma espécie de complexo de édipo invertido faz sentido, quando, quase que obsessivamente, ele se esforça para colar os pedaços de um porta retratos antigo do pai, que há muito foi esfacelado em um chão de taco do velho casarão cheio de basbaques. Bruce morreu em 1980, o livro, originalmente, é de 2006. Fun Home é uma das novelas gráficas mais premiadas pela crítica norte-americana.
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TÍTULO: Fun Home - Uma Tragicomedia em Familia
AUTOR: Alison Bechdel (Trad. de André Conti)
EDITORA: Todavia
ANO: 2019
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