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[Em casa] A música invisível

\\ TEATRO


Uma passagem, mesmo virtual, que aquece o coração, Sopro convida o público à continuação dessa memória, que acontece toda vez que, num teatro, um ser humano encontra outro.

Por Bruno Pernambuco


Cena do espetáculo Sopro. Foto de Christophe Raynaud de Lage

[Por conta da epidemia do vírus COVID-19, e das medidas de distanciamento para combate à doença, o Teatro Nacional Dona Maria II, de Portugal, disponibiliza um acervo de apresentações de suas obras. Sopro, de Tiago Rodrigues, está disponível em https://vimeo.com/244309529, em apresentação no Festival de Teatro de Avignon, na França. O espetáculo seria apresentado na 7ª edição da MiT, em São Paulo, mas teve suas sessões canceladas devido ao coronavírus.]


A vida é um sopro, do qual nunca é claro se somos o ponto de nosso personagem ou o ator que age pontuado por essa voz. Sopro, espetáculo de Tiago Rodrigues, mas, sobretudo, de Cristina Vidal, ponto, durante mais de 25 anos, do Teatro Nacional Dona Maria II em Lisboa não faz mais que lembrar isso, e seria absolutamente desnecessário que ele fizesse qualquer coisa mais.

Sopro é um espetáculo que tem seu centro invisível e que, a caráter, gira em torno de um personagem em extinção. O desaparecimento da profissão de ponto é parte do desaparecimento do contato, da perda do humano enquanto guia dos encontros cotidianos, e de sua validade, conquanto se opõe à precisão da racionalidade, da técnica e da especialização. É aterrorizador observar o desabitado teatro em ruínas, proposto pelo diretor a Cristina e apresentado ao espectador em uma versão amenizada. Por um lado, ele parece um anacronismo, algo difícil de imaginar num momento de extrema criatividade e produção teatral, em que a ruína do velho (e aí inclusive a dissolução das formas clássicas, e mesmo dos espaços tradicionais, do palco, da plateia), sintetizada com o encontro do presente- da redescoberta do autoritarismo, que mais que só externamente ocupa autores dessa geração, à crise permanente, que vai se tornando forma do estado contemporâneo, aos efeitos contínuos de uma banda da história que ficou por contar, tapada a sua boca- é ocupada com muito gosto por novas formas teatrais, em trabalhos que refletem um caldeirão criativo que age sobre esse velho legado, desmonta-o, altera-lhe pontos de vista, inverte suas pretensões e, às vezes, simplesmente improvisa por sobre suas falas velhas, e assim transforma-o. Ao mesmo tempo, materialmente se vê o ponto largado nas mesmas ruínas, como se fosse um mero elemento desatualizado, superado. Sopro é, mais do que tudo, um tocante convite ao ponto, para unir essa memória, encarnada em Cristina, que guarda uma história do teatro canônico, à criatividade que, numa crise das estruturas que estavam postas, subverte até a representação tradicional dos personagens. Sem, a esse cânone, abaixar a cabeça, ou aceitá-lo sem digestão, sem trabalho e reimaginação sua. É assim que Sopro é, também, a construção de um folclore, uma história guardada por essa xamã, para quem o público é tão agente de seu ritual quanto os atores que diretamente reproduzem seus comandos.


Uma passagem, mesmo virtual, que aquece o coração, Sopro convida o público à continuação dessa memória, que acontece toda vez que, num teatro, um ser humano encontra outro. E o espetáculo conquista pela hospitalidade, em sua ternura fazendo perceber que aquilo a ser contado já habitava dentro de nós. Como o amor entre a diretora e Vershinin, o riso discreto das atrizes ao se referirem a si próprias sob as instruções de Cristina, a despedida, enlutecida, antes do apagar das luzes, todas, também, histórias nossas, que percebemos mexerem-se, dentro de nós, nessa rememoração tão presente, sob tantas camadas de encenação. É magistral como se faz visível o quanto Sopro se diverte com esse jogo, de uma astúcia falstaffiana, e quanto dele brota uma emanação de vida que, conquistando-nos, estende a mão a essa memória mais antiga.


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