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A Ocupação se desenrola num caminhar de múltiplas narrativas, que ora reafirmam a fragilidade da vida com grande dose de descrença no cenário político-social, ora se apegam a uma ínfima luz no fim do túnel
Por André Vieira
O que uma ocupação de sem-teto no centro, um pai adoentado por uma crise pulmonar grave e uma esposa que vive a angústia do não engravidar teriam a ver com o título do novo romance de Julián Fuks, A Ocupação (Cia. das Letras, 2019)? Com exceção do primeiro exemplo, que conversa diretamente com a temática e dá contornos concretos para a ambientação da obra, os dois outros não se encaixariam numa primeira virada de páginas ou numa leitura distraída que busca relação direta entre ato político, moradia digna e procura pela identidade em meio ao caos urbano. Com esses temas, mais do que dar ao leitor a impressão de lermos uma autoficção de Fuks, aos olhos de Sebastián, seu alter ego, desvendamos a sutileza que é ocupar e ser ocupado pelas palavras dos outros a nosso redor.
Na mesma linha de seu premiado romance, A Resistência (Cia. das Letras, 2016), Fuks resgata ao longo de uma prosa simples, de frases fortes e marcantes a literatura presente no contato com outro e com ambiente em que ele é colocado. Um relato de guerra de sírio refugiado, o depoimento de haitiana sobrevivente de um terremoto, e a descrição das larvas, dos ratos e do homem tomando um apartamento habitado por uma gata felina e por uma Rosa humana são alguns dos momentos em que o texto abarca as palavras e as histórias compartilhadas no Hotel Cambridge e as faz ecoar ao longo da narrativa, seja como em pequenos intervalos em que o intimidade de Sebastián é deixada de lado para abertura de outras janelas dentro do romance, seja, ao contrário, em momentos em que a própria subjetividade de autor é ressaltada pelo contraste com o outro, que passa, agora, a ser tratado com o mesmo peso e a mesma importância do que o eu-escritor.
Na narrativa, essa característica do “contágio”, tanto por sentimentos e como por vozes, entre personagens e narrador é talvez mais acentuada quando Fuks se propõe a narrar as visitas ao pai no hospital, e quando expõe o íntimo de seu apartamento de palmeiras verdes e redes de balanço, friccionado pela expectativa do filho que não vem e pelo desgaste da relação de uma década entre homem e mulher. Nesses momentos, fica claro como os pensamentos e as memórias de Sebastián são invadidos pela presença das personagens em cena e de como seus gestos, suas falas e seus silêncios são ressignificados pela própria experiência do escritor, dando novos contornos às passagens e aproximando leitor e autor, como se este fosse um amigo querido que não ouvíamos falar há tempos.
Por esse motivo, o maior trunfo do romance talvez seja a maneira simples, fluida e viva com que a escrita de Fuks nos ocupa a mente e nos conecta a sentimentos difusos, às vezes, ambíguos por si só, mas que fazem parte do tecido incerto da vida, à medida que são ilustrados por histórias do cotidiano urbano, num misto de otimismo e desesperança, dor e superação. E é por isso, por retratar ambientes tão próximos e ainda sim tão distantes, por meio da interseção do eu-escritor com a universalidade do eu-homem, eu-filho, eu-pai, eu-humano que A Ocupação nos faz repensar o papel da literatura em nossas vidas, em como a contação de histórias, e o relato de experiências levam nossas memórias adiante, mas também nos fazem reconectar às pessoas e aos ambientes em que elas se encontram, colocando em foco o sentimento próprio que nos singulariza filhos, pais, irmãos, maridos e esposas, como pessoas, e antes disto, como seres humanos.
Assim, tendo como pano de fundo a alegoria de um hotel em destroços, num país em cacos, com vidas em ruínas, A Ocupação se desenrola num caminhar de múltiplas narrativas, que ora reafirmam a fragilidade da vida com grande dose de descrença no cenário político-social, ora se apegam a uma ínfima luz no fim do túnel, que deslumbra um futuro incerto e tumultuado, mas ainda sim possível, por meio das histórias e das experiências que vivemos e compartilhamos entre nós. Essa é a linha que o escritor moçambicano, Mia Couto, defende na carta publicada a Fuks no livro, que é preciso ter fé nesse filete de luz que nos escorre por nossos dedos: “A literatura deve afirmar sua própria soberania e inventar aves que, por sua vez, inventam um outro céu”.
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TÍTULO: A Ocupação
AUTOR: Julián Fuks
EDITORA: Cia. das LetraS
ANO: 2019
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