\\ TEATRO
Mas, mesmo que se propusesse a falar de sua estrutura geral, de seu significado, ou de apenas contar histórias a respeito do processo da obra, reveladas ao final da apresentação, numa conversa a que Julie e Horace convidam a plateia, é possível falar de Orlando apenas como a experiência pessoal da introspecção.
Por Bruno Pernambuco
"Escutando o vento, me perguntei o que é que eles ouviam. Perguntei-me o que, e quem, eu esperava. O crepúsculo em que existíamos trazia saudade. Aquele azul de Kinshasa me contava docemente das visitas anteriores, e distraidamente eu fascinava-me com aquelas histórias ancestrais. O marinheiro velho, manchado de sol e sal; aquela mulher, linda como no momento eu nunca havia visto, que ficara comigo da entrada até a saída, antes de desdesaparecer; aquele pedaço fustigado de paisagem, que parecia se lembrar de uma piada engraçadíssima e segurar o riso, sem querer estragar o silêncio.
Não foi muito o tempo da visita, foi apenas outro. A consulta era o tempo sentado na sala de espera. Eu estava bem, só um pouco cansado. Passava o dia todo sem falar com ninguém, e era como se não me fizesse falta. De longe aquela rebentação do vento gelado me dizia que alguém não paga o imposto do imperador, e há uma festa acontecendo desde o começo da noite, farta e iluminada pela lua."
Há muito a dizer a respeito de Orlando, a ópera-instalação dirigida por Julie Beauvais e Horace Lundd. Como sobre seu ponto de partida, uma leitura particular do pós-binarismo que, paradoxalmente ao que é entendido como um movimento intelectual de vanguarda, minuciosamente elaborado e teorizado, e que fala sobre uma realidade da forma mais avançada da sociedade tecnológica, visa resgatar uma experiência humana essencial, que inclusive deixa em aberto a questão se pode ser alcançada pela linguagem. De fato, essa experiência essencialista, que foge à lógica da polarização, e também do gênero, atravessa a apresentação, e as histórias ali presentes. Ou sobre a livre-interpretação de Virginia Woolf, que não deixa de ser uma ação autoral sobre a autora: aquilo que parte da comoção com sua obra, que traduz para outra linguagem a existência psicológica, na alma, da existência secular do personagem- e que, assim sendo, não é menos Orlando que o romance original. De fato, não é possível falar sobre um Orlando, dada a sua natureza mutável- cada apresentação é única, dando espaço, cada vez, à ação de um artista diferente, responsável por, com sua música, desvelar a verdade daquele silêncio, da mesma forma que os antigos teólogos estudavam as escrituras, elaborando críticas apenas para trazer à tona a verdade que já estava contida nos livros. Mas, mesmo que se propusesse a falar de sua estrutura geral, de seu significado, ou de apenas contar histórias a respeito do processo da obra, reveladas ao final da apresentação, numa conversa a que Julie e Horace convidam a plateia, é possível falar de Orlando apenas como a experiência pessoal da introspecção. Esse é menos um limite objetivo da crítica que um limite do amor pela obra. Descrever-lhe de outro ponto de vista seria trair o envolvimento com ela. Essa pessoalidade é a marca principal da instalação, e se ela mesma convida-se a ser si própria, sem amputações, sem reduções quanto à sua forma, mesmo envolta por pressões pela definição a um gênero artístico, e posta sob um contexto estranho, como é, possivelmente, o de uma “mostra de teatro”, então não cabe discussão.
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ORLANDO
(Teatro Sérgio Cardoso)
TÍTULO ORIGINAL: Orlando
*instalação vídeo-musical
DIREÇÃO: Julie Beauvais e Horace Lundd
SUÍÇA/FRANÇA 2017 | 60min | Classificação indicativa: livre
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