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A Peste retoma a obsessão do autor com a Argélia- França e ao mesmo tempo não, lugar e não lugar, ilha e prisão. É essa a casa velha, roída pelos ratos, a autoridade que começa a ruir.
Por Bruno Pernambuco
The Plague, Arnold Bocklin
Falar da Peste é falar daquilo que ainda habita em nós- tanto a morte direta, crua, ainda inescapável, quanto a ira divina, o castigo aos infiéis na forma do inimigo assolador e irracional, que avança sobre a consciência e não cede às suas definições- esse avesso do sagrado que pulsa no tédio da quarentena, magma que movimenta-se sob os pesados sedimentos do costume, da organização social, da racionalidade científica.
Esse jogo com o sagrado, que em nenhum momento deixa de inverter-se sob si próprio, parece como uma dialética fundamental de A Peste. A infecção desenrola-se sob um novo mundo, secular e existencialista; ela se torna importante não mais como a ação todo-poderosa de um deus, mas na medida de nossas ações e do que ela revela a respeito de nós mesmos. Esvazia-se totalmente a dimensão do divino, e com efeito o ato do padre Paneloux, ao recusar essa palavra do castigo que de início ainda pregava, é vazio, pois essa doutrina original não era mais que pastiche, ou ruína abandonada num mundo que não mais se organiza segundo essa cosmogonia. A epidemia de Oran não é a mesma que uma do mundo medieval. Sua tragédia não é mais a de um encontro do humano com um inimigo imparável (que ainda deixa consigo uma questão: não seria, ainda, uma tentativa do homem de reclamar para si o controle absoluto sob os descaminhos da praga natural apontá-la como culpa sua?) mas a de uma consciência que, não mais restrita por esse limite absoluto, Deus, se vê ainda incapaz de agir sob a ameaça capaz de roer sua existência, e assim tem fundada em si a culpa e a ansiedade, de ser, também, agente daquilo que lhe ataca, inapta a cumprir sua função assumida, de controle. Toda essa experiência, sob a ação de Camus, resulta em ainda mais uma inversão: é nesse desolamento, na terra abandonada de metafísica, que há o reencontro com essa transcendência do humano- em momentos como a ação com tons sacrificiais de Jean Terroux, esse fugidio lume que desperta no narrador da história o sentimento que “há mais para se admirar que para se desprezar nos homens”.
A Peste retoma a obsessão do autor com a Argélia- França e ao mesmo tempo não, lugar e não lugar, ilha e prisão. É essa a casa velha, roída pelos ratos, a autoridade que começa a ruir. Aqui Camus retoma a história, utilizando-se de Oram, assolada no início do século XX por uma sequência de epidemias, para trabalhar esse espaço arruinado, desertificado após uma ruptura histórica, com o final da guerra, que traz o esgotamento das justificativas do colonialismo e da ideia de um império ultramarino. Essa terra passa então a significar a desolação absoluta, a falta de sentido, simultaneamente à esperança nova, que é essa conclusão do admirável do humano. Mas, mais uma vez, nada em A Peste é esperançoso, ou nada permanece dessa forma. Essa conclusão é menos uma esperança ativa que um encontro constante com a própria natureza, que nunca perde sua ambivalência.
A Peste fala, também, de um devoramento dos horizontes, que não sobreviveram à guerra. O que resta, o que ela deixa restar, é esse humano, no centro do palco, agindo sobre esse tempo em branco.
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