\\ TEATRO
“Eu fui para a Índia e, conforme eu fui percebendo o que era a vida daquelas mulheres, eu definitivamente não sabia mais quem era o personagem ali”.
Por Bruno Pernambuco
Imagem: OBSERVATÓRIO DO TEATRO
O Homem Fal(h)o é um monólogo que, ao pôr diretamente a luz sob seu ator, trata da incompletude que os termos “homem”, “personagem” e “plateia” detêm por si só. Reflete também, no entanto, sobre a incapacidade dessas definições em encontrar aquilo com o qual possam ter sentido, uma vez que o termo “outro” está igualmente inacessível — os abraços estão sempre afastados, os encontros sempre cindidos.
Só pode falar da impossibilidade dos encontros quem viveu um encontro que isso lhe despertou, e é assim que nasce O Homem Fal(h)o, cujo enredo de uma viagem a trabalho para Kolkata, na Índia, a segunda maior zona de prostituição da Ásia, serve de pano de fundo para histórias pessoais do então documentarista e nesse momento ator e dramaturgo Gabriel Pernambuco.
Como a cenografia convida o público efetivamente para dentro daquele mundo de sujeira e repulsa que é a cidade envolta por um braço poluído do Rio Ganges e, dentro dela, para o “bazar” em que a segurança, intimidade e dignidade humana de mulheres são negociadas, sob justificativas religiosas e sociais; dessa forma, esse movimento de transição do exterior em direção ao pessoal se torna muito belo. Amparado por esse universo, o espetáculo ganha intensidade, e, sem propor que essas histórias sejam universalmente mais importantes que aquilo que se passa concretamente em Kolkata, deixando que elas ressoem em cada espectador de maneira íntima e particular.
Assim uma jornada por lembranças, confissões, e relacionamentos pessoais do autor/personagem ganham vida e densidade, e é isso que permite que as reflexões desse homem em posição contraditória a respeito de seu próprio papel, e sua indagação sobre como ele (e nesse momento todos aqueles na plateia que se identificam com as vivências e sensações ali contadas se perguntam: “e como eu”) contribui, também, para essa opressão e violência contra as mulheres, surjam naturalmente daquilo que está posto, e não se coloquem como um elemento alheio à narrativa da peça.
Tem muitos aspectos de O Homem Fal(h)o que ainda poderiam ser melhor abordados, em especial aqueles que fogem dos estritos limites do palco, como a transmissão no Instagram que é realizada durante cada apresentação, e as camisetas que são postas à venda após o encerramento, uma parceria feita com uma ONG que ajuda mulheres em situação de risco na Índia.
No entanto, prefiro fechar aqui em uma nota pessoal. A sensação de assistir Gabi, um parente tão próximo e querido, emendando no palco essas histórias que eu desconhecia é ao mesmo tempo de proximidade e distância, e isso, para mim, é um dado da força do espetáculo — quebrando convenções, e de certa forma rejeitando mesmo o rótulo de “peça” —, que afirma suas posições e seu desejo por mudança de uma forma que permite à plateia estar simultaneamente dentro e fora deste universo, envolvida na história e ao mesmo tempo podendo cada um refletir sobre essas questões dentro de sua realidade pessoal.
No fim das contas, o que fica realmente do monólogo é a sinceridade daquilo que é contado, mesmo que a possibilidade de ação vinculada processo de busca por si próprio envolve questões muito delicadas — não apenas do quanto um homem dispondo, por uma organização social, intrinsecamente de poder pode efetivamente refletir quanto a seu próprio papel, mas quanto uma reflexão nos termos em que estão postos o ator/dramaturgo/personagem —; além disso, a grande maioria da plateia do espetáculo, o Espaço Parlapatões no centro de São Paulo e muitos outros elementos que juntos formam uma cena determinada pode influir sobre uma realidade social totalmente distinta, da qual a experiência está muito distante.
São questionamentos que não são deixados de lado pelo monólogo, e ao assumir suas limitações não apenas em enfrentá-los, mas também em entendê-los, o espetáculo redescobre sua força.
É inusitado, para os olhos, mente e coração acostumados aos esquemas tradicionais do teatro burguês, que o final da apresentação traga uma sensação que é menos de fechamento de uma história que foi contada e mais de uma abertura que é anunciada, e que está posta na forma da possibilidade de novos trabalhos, iluminados pela experiência de O Homem Falho, e surgidos após uma lavagem pública da alma. Desses, Gabriel Pernambuco planta a intenção. A ver por que caminhos essa história vai andar.
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