\\ CINEMA
Muitos tempos simultaneamente, as cenas de Hiroshima, mon Amour não estão ao certo nem no passado nem no presente, e não se espera que elas sejam apreciadas assim.
Por Bruno Pernambuco
(Um bocado de anos atrás, assisti Hiroshima mon Amour, um acontecimento que a princípio passou levemente, e depois ficou em mim como um terremoto, que nunca deia de se impôr sobre aquilo que parece firme. O que vem a seguir não é mais que uma reconstituição, uma andança pelas invenções da memória, levemente tingida por um pouco de realidade, do que sobra de inspirações, referências, conversas, e tudo mais que a admiração por um filme limitadamente pode trazer. O amor por ele transcende, com a leveza de quem segura uma jóia de chumbo, todo esse mise-en-scene, assim pouco falo do filme em si, da história, das pessoas por trás dele, do mundo fora do negativo que a câmera guardou- e essa é a única forma em que sinto falar sobre ele)
Nada é visto duas vezes. A mesma imagem não é vista pelos mesmos olhos, mesmo que essa imagem seja nada. Retina e memória são duas musas em plena disputa, uma mero acidente biológico, outra, peso a cobrir tudo, triste condição que seu servo, o poeta, invoca; uma que captura a realidade e outra que a inventa, lhe impondo regras nomes de lugares e de pessoas, linguagem, separando categoricamente o que é entendido e o que não é, assim caindo sempre vítima de si mesma. Tenho certeza de nunca mais ver pela primeira vez, nem o filme, nem os lugares, nem as pessoas, e parece que nenhuma palavra escapa a esse olhar...
A visita de Hiroshima mon Amour é uma experiência única do tempo, presente eterno, maio sem junho a seguir. Passado e futuro simultâneos, é talvez a obra que melhor conseguiu traduzir a sensação do que é estar numa sala de cinema e assistir a um filme, criança que recém descobre seu próprio reflexo. Muitos tempos simultaneamente, as cenas de Hiroshima, mon Amour não estão ao certo nem no passado nem no presente, e não se espera que elas sejam apreciadas assim. As imagens, que trabalham uma arte do desaparecimento, conversam com algo em nós que sempre vive- e que, se pode entender, sempre esteve vivo, pelo menos junto conosco. Assim a história de Nevers e Hiroshima se desenrola em nós, e mesmo sua personalidade- mesmo de quem essa história é história- muda ao longo do filme, ora é da atriz, ora é do próprio tempo, ora é do horror indizível, experiência que só existe, na alma e no corpo, em um segundo, da completa falta de chão, e depois redesaparece ; ora é a história de qualquer pessoa, em qualquer tempo, ora está tão certa no olhar, na força dos pensamentos e na ternura de Emmanuelle Riva com o mundo que mostra já ter seu endereço preciso definido. O tempo é esculpido, na Hiroshima depois da terra arrasada, com a precisão de um sonho, uma boca aberta que não deixa de gritar, um ouroboros, um caminho que devora a si próprio, uma certeza agarrada nas mãos, sob lágrimas. Não sei falar sobre Hiroshima, mon Amour a não ser em silêncio. De meu reflexo, do outro lado do vidro embaciado, me despeço de mim mesmo.
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