\\ TEATRO
Um nó fecha a encruzilhada. O carrossel das almas enche-se de novas cores e enfeites naquela comoção de tanta lindeza
Por Bruno Pernambuco
[No dia 27 de março é comemorado o Dia Internacional do Teatro, data instituída em 1961. Em meio à epidemia do vírus COVID-19 e ao recolhimento social, grupos de teatro brasileiros elaboraram, para celebração da data em 2020, uma ação conjunta, em que disponibilizam na internet registros de apresentações já ocorridas, além outros tipos de vídeo sobre, ou com, seu trabalho.
Como parte desse processo, os Clowns de Shakespeare compartilham, durante sete dias, uma gravação de Sua Incelença, Ricardo III, espetáculo marcante na história do grupo. Aqui, a preocupação tanto de Frente&Versos quanto desse crítico que vos fala está menos em digressar uma repetição a respeito da peça e de seu contexto e mais em aproveitar essa oportunidade imperdível- e, nesse interim, convidar você, leitxr, para que sua quarentena possa, também, ser um pouco mais presente e mais colorida.]
Imagem/Divulgação
Um nó fecha a encruzilhada. O carrossel das almas enche-se de novas cores e enfeites naquela comoção de tanta lindeza, da qual carregam-se as máscaras e a atuação exuberante. Sua Incelença Ricardo III é uma recriação emocionante, brincando com a teatralidade do original shakespeariano para atualizá-lo, fazê-lo presente, e realçando esses aspectos fazer ressoar as potentes imagens da tragédia primeira.
Uma forma autoral escolhida para o retrabalho é a transformação da lógica temporal e da sequência dos acontecimentos do espetáculo original. A música é um elemento que dá unidade a Sua Incelença Ricardo III, que convida tanto para dentro daquele mundo quanto para dentro das maquinações do protagonista- transformando seus solilóquios macabros, acrescentado-lhes uma dimensão única A beleza tocante dessas canções instaura o tom lúdico que dá sentido a toda a peça, e que dá realidade às ações que acontecem sob esse espaço onírico, nesses lapsos temporais em relação ao Ricardo III de Shakespeare. Essa linguagem transforma Sua Incelença em sua própria peça, original, e reforça sua beleza convidativa, amigável, que abraça para dentro de si.
Ricardo III é um personagem raro. Dentro da história da obra shakespeariana, marca o início de um movimento em direção a uma nova consciência, e de uma nova expressão na forma teatral de uma experiência humana. No entanto, o personagem, assim como toda a peça que o cerca, se presta ainda a uma atuação tipificada, e a marca desse desenvolvimento humano no rei usurpador se faz mais presente em seu carisma magnético, transbordante em cada um daqueles extravagantes e farsescos momentos de conversa sua com o público, que em sua dúvida, atiçada no sonho premonitório e na derrota final em batalha. Sua grande inovação parece estar no rastro de culpa e de horror em cada membro do público que, junto a ele, se vêm tornarem-se frios calculistas do jogo político. Ricardo é esse personagem que altera entre a quentura e a frieza, entre o utilitarismo com que mata e ordena matar- nada pessoal, apenas podando a erva daninha que se põe como entrave ao poder- e o gozo perturbado de suas elucubrações eróticas e de sua relação com Lady Anne. Se junto a si ele transforma todo o seu público em uma ralé de pragmatistas maquiavélicos, isso só acontece pelo quanto é ainda tão visível sua dimensão humana.
A coroação definitiva da incelença acontece apenas após a queda derradeira, no lamúrio do coro, que faz de Ricardo essa figura de lenda- a magistral ironia, que apenas se consuma na perda daquele poder pelo qual o personagem fez tudo. Aquilo que, durante a peça, foi seu único motivo e sua única emoção, e que bastou para transformar-nos em seus cúmplices. Esse inverso falso do fechamento digno e nobre- que coroaria, em outra vinda, o herói justo- é que nos deixa apenas o incômodo, e o rastro da passagem de Ricardo.
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