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"Cartas perto do coração" retrata a fragilidade e a sensibilidade de Lispector e Sabino
Por André Vieira
Qual a verdadeira essência da literatura? Para alguns, é a forma como podemos narrar uma história, um fato ou uma mentira em todos seus únicos e delicados detalhes e distendê-la no tempo e espaço sem que perca o frescor original a cada releitura preguiçosa. Já para outros, é uma maneira de buscar a humanidade — ou a falta dela — singular que caracteriza a nós e a nossos ancestrais como membros de uma família comum, de uma história compartilhada de erros e acertos. E ainda tem alguns que dizem que a boa história sempre trata do olhar, direcionado pelo autor ou pela autora: de como enxergamos as entrelinhas da natureza e do cotidiano que fazemos parte e como podemos melhor inserir naquele contexto cuja compreensão nem sempre é simples. Se já é difícil definir com clareza qual é o papel da literatura e qual são suas marcadas deixadas em leitores mundo afora, o que poderíamos então dizer da vocação do escritor?
Se por um lado ele é o senhor ou a senhora que nos toma pela mão e mergulha conosco em seu universo próprio de silêncios e sombras, por outro, tem vezes que se personifica em companheiro frio de palavras austeras nem sempre deixando claro suas verdadeiras intenções com o texto ou com o bem-estar do leitor que sofre em seus escritos. Na fanfarronice de seu estilo, moda ou de sua latência de palavras, por vezes somos injustos com gênios e mestres, lhes pronunciando nomes e apontando falhas nos modos, na personalidade e na fala quando, de fato, nunca os conhecemos pessoalmente ou trocamos qualquer meia dúzia de palavras ou olhares, além de através de seus livros. Assim, se a obra de um autor é uma janela onde poderíamos ver seus valores e crenças sobre a vida, é pela forma como ele ou ela se debruça sobre o papel e bola seus causos, que enxergaríamos de fato como pensa, age e sente os pesos da vida, muitas vezes de forma inconsciente.
Em Cartas perto do coração, livro de cartas e memórias de dois dos grandes escritores brasileiros, Fernando Sabino e Clarice Lispector temos vista privilegiada para dramas, desabafos, descuidos, medos e felicidades que permeavam vida de jovens-adultos, junto a seus primeiros ímpetos como escritores, jornalistas e tradutores em cantos diferentes no hemisfério norte e, mais tarde, em polos distantes da América. Divido em duas partes principais, entre 21 de abril de 1946 a 27 de junho de 1947 e de 2 de fevereiro de 1953 a 11 de março de 1959, o livro nos presenteia com diálogos sinceros e carinhosos que entrelaçam a amizade íntima — coisa rara hoje em dia — junto com a prosa pujante de seus participantes, fazendo parecer fácil aliar sentimentos ternos e queridos a uma olhar refinada e afiada.
De fato, o livro é representante de um tempo que não existe mais. Na Via Crúcis do mundo pós-Segunda Grande Guerra, conhecemos a preocupações de um tempo analógico, dos cigarros sem filtro, dos centavos que faltavam para o pagamento de aluguéis, do cinema ainda com o charme da écran noir e de um Brasil e, sobretudo, de um Rio de Janeiro preocupados com o fomento de uma cultura nacional e sua imagem lá fora. É a partir desta perspectiva estrangeira, que tanto Sabino quanto Lispector trocarão suas inconfidências literárias e admiração recíproca um pelo outro. Desde Bergamo, na Suíça, Clarice conta da vida encastelada que leva entre artigos de revistas e a companhia de sua faxineira austríaca, já de Nova Iorque, Fernando relata o inferno que é viver dentro um escritório com um chefe tagarela e do perrengue de ir ao dentista no inverno; é na encruzilhada desses cotidianos clandestinos, sonhos longínquos e corpos distantes entre si que nascem cordialidades e ironias, broncas e elogios, prosa e poesia que inundam páginas e páginas de correspondência de verdadeiros amigos.
A amizade é tanta que transborda para outros âmbitos além das cartas. Publicações em conjunto, amigos de longa data, literatura e cultura nacional e internacional da época, nada falta no emaranhado de afagos e mágoas de Clarice e Fernando: a delicadeza entre os dois é tal, que é difícil conter o sorriso bobo que contagia o leitor, acompanhando de camarote a fragilidade de seus heróis literários. Talvez seja por isso que a leitura cative tanto: não apenas temos pela prosa leve e reflexão macia que marcam as páginas da correspondência de Cartas Perto do Coração, mas também pela fraqueza e grandeza dessas duas grandes personagens da literatura brasileira transformam aqueles ídolos em meros mortais. Seus medos, suas intolerâncias, seus desejos, seus vacilos e ânsias apontam não para falhas maiores de deuses incompletos, mas sim para a humanidade presente como escritores e seus pensamentos mais íntimos.
Com textos agrupados em uma edição lustrosa e bem-organizada pela Record, em 2011, Cartas perto do coração um best-seller de sebos é uma ótima escolha para noites solitárias à procura de palavras ternas ou de companhia agradável antes da hora de dormir.
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TÍTULO: Cartas perto do coração
AUTOR: Fernando Sabino e Clarice Lispector
EDITORA: Record
ANO DE EDIÇÃO: 2011
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