\\ ARTE
Muito se discutiu sobre a qual escola pertencia o pintor, procurando, em vão, um “ismo” para classificá-lo
Por Ruy Castro*, colaboração para Frentes Versos
Ismael Nery desenhava e pintava compulsivamente. Era rápido e impaciente — começava e acabava o que estava fazendo no mesmo dia, usando às vezes materiais precários, como papelão, jornal velho, papel de pão, o verso de um cartão ou qualquer espécie de madeira. Não conservava nada do que fazia. Ao terminar um desenho ou aquarela, amassava-o, jogava-o com desprezo numa cesta de papéis ou o destruía. Pintava uma tela, apagava-a ou pintava outra por cima. O principal, que era o ato de fazer, já acontecera. Sua mulher, Adalgisa, e seu amigo Murilo saíam pela pequena casa na rua São Clemente, em Botafogo, procurando no lixo ou pelos cantos as obras-primas que ele desprezara.
Isso explica que, em mais de quinze anos de produção, tão pouco da arte de Ismael Nery tenha sobrevivido. Ele era o homem que se formara pela Escola Nacional de Belas Artes, fora recebido por Marc Chagall, Joan Miró e André Breton em Paris e passara muitas horas de lápis e bloco na mão nos museus europeus — e, apesar disso, não se considerava pintor.
Não tinha nada de seu nas paredes e, embora participasse de exposições, não admitia se profissionalizar. Nunca vendeu um quadro em 33 anos de vida — preferia presenteá-lo a quem lhe falasse em comprar, como fez com Graça Aranha e Alvaro Moreyra. Sua mulher, com quem se casara em 1922, aos 22 anos — ela, de 1905, aos dezesseis —, um dia se tornaria a poeta, escritora, embaixatriz, política e jornalista Adalgisa Nery. Murilo, o amigo, em breve viria a ser o poeta Murilo Mendes. Os dois entraram ao mesmo tempo na vida de Ismael e escreveram grandes páginas a seu respeito — o que era inevitável, porque tiveram a vida transformada por ele. O importante é que nunca foram desmentidos pelos que conheceram o artista. E o que escreveram beirou, às vezes, o inacreditável.
O Ismael de Murilo Mendes era o homem articulado e brilhante, que ele conhecera em 1921, na seção de arquitetura e topografia do Patrimônio Nacional, onde Murilo, um ano mais novo, já trabalhava. Ismael fora contratado como desenhista. Era um rapaz atlético, excepcionalmente bonito, de nariz marcante, bem-vestido. Chegou, sentou-se à prancheta e começou a desenhar. Meia hora depois, saiu para o café, deixando os desenhos à mostra. Murilo foi espiar. O que ele viu, homenzinhos em torno do projeto de um edifício, convenceu-o de que estava diante de alguém especial. Quando Ismael voltou, Murilo se apresentou. Ismael contou-lhe que vinha de um ano de estudos em Paris e Roma, onde trocara as aulas da academia por idas aos museus, para aprender com os clássicos. Disse que, ao descobrir Tintoretto e Ticiano, tivera vontade de quebrar os pincéis.
Por essa relação irregular com a arte, os críticos nunca puderam
classificá-lo em escolas. Falou-se de expressionismo, cubismo e de
surrealismo, mas só por falta de um ismo que o definisse com mais
precisão. A paisagem, por exemplo, não lhe interessava. Sua pintura era o homem, a mulher ou ambos, harmônicos e sensuais. Muitos de seus autorretratos eram andróginos, seu rosto e corpo se confundindo com os de Adalgisa. Talvez não fossem autorretratos, mas retratos de pessoas que ele nem conhecia, mas em quem se via e a quem apunha seu rosto, numa tentativa de simbiose universal.
Assim como não se dizia pintor, Ismael também não se dizia poeta,
arquiteto, cenógrafo, figurinista, reformador social, filósofo, teólogo ou matemático, embora praticasse todas essas funções e fosse reconhecido pelos profissionais delas. Nos anos 40, Manuel Bandeira incluiria Ismael numa antologia de poetas brasileiros bissextos, classificação de que Murilo Mendes discordava. Bissexto é quem faz poesia nas horas vagas, e Ismael, segundo Murilo, fazia-a o tempo todo — violenta, em voz alta, ou suave, reflexiva, que escrevia sem pensar em publicar. Outras possíveis aptidões de Ismael, como a dança, ficariam apenas na hipótese. Apesar de sua massa corporal, era de grande graça física e, em garoto, queria ter estudado balé clássico, mas sua mãe não permitira.
Experimentou a fotografia e falou que gostaria de fazer cinema. Pode-se pensar que um homem com tantas aptidões deveria se julgar acima dos outros, mas Ismael era simples, acessível. Sentava nos cafés, gostava de futebol, regatas, boxe, falava com todo mundo. Esses com quem conversava não imaginavam que tinham ao seu lado um homem que visitava hospitais, hospícios, albergues, prisões, sanatórios — porque, neles, se defrontava com a tristeza humana, que achava de sua obrigação mitigar.
Tanto quanto o artista, o homem Ismael fascinava Murilo e o círculo de amigos que o visitavam para escutá-lo. Sua casa era um dos grandes endereços da inteligência no Rio, assim como as de Ronald de Carvalho, no Humaitá, e Alvaro Moreyra, em Copacabana. A diferença é que, na de Ismael, quase que só ele falava. Era um conversador impenitente e polemista apaixonado, uma espécie de erudito intuitivo, capaz de discorrer sobre tudo, das manchetes dos jornais à abstração mais remota. Lia pouco ou nada — os únicos livros que se viam sobre seus móveis eram de
anatomia —, mas sua compreensão sobre qualquer problema era, segundo Murilo, instantânea. Essa fluência lhe dava forte ascendência sobre os amigos e os fazia de plateia.
*Jornalista e escritor. É um dos maiores biógrafos do Brasil. Escreveu obras definitivas sobre Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. Sobre Ismael Nery, Ruy Castro discorre sobre o artista em seu último livro, Metrópole À Beira-Mar (Cia. das Letras).
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(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da FV)
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