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Dialoga-se, ao ler esses Escritos, com um Pasolini que se apresenta de maneira totalmente distinta, distanciado da experiência sublime que tantas vezes acompanhou sua obra
Por Bruno Pernambuco
Novo lançamento da Editora 34, Escritos Corsários traz um lado de Pasolini menos conhecido no Brasil. Se o multiartista italiano ficou conhecido pelo que conseguiu articular em seus filmes de uma beleza tão cruel, e mesmo dentro seu estudo filosófico mais atencioso, pouca — pra não dizer nenhuma — foi a atenção dada a seus ensaios publicados de forma independente e esparsa, em periódicos, que constroem um diálogo a partir de vozes que não respondem exatamente uma à outra.
Nos fragmentos reunidos na obra - artigos publicados em jornais, além das notas de correspondência pessoal do autor e de contribuições relacionadas - revelam com atenção especial a preocupação com o discurso público e com a reflexão filosófica que nasce do acontecimento cotidiano. Simultaneamente - saindo, neste caso, das intenções expressas do autor - se vê um relato muito preciso de um tempo histórico que também define o próprio pensamento. Como em tantas vezes, como no caso do atentado neofascista na Piazza della Loggia, em Brescia, o acontecimento histórico é aquele vaga-lume que revela a respeito da longa duração da história.
É possível entender, através das descrições históricas, uma realidade dos anos de chumbo da Itália, num momento em que a ação política se misturava à vida do dia a dia através de irrupções violentas e de uma tensão constante, em que a disputa partidária se traduzia em uma guerra civil ora velada, ora explícita em transformações da paisagem urbana. Assim, a figura do intelectual engajado em seu tempo se revela para o leitor com uma naturalidade. É possível enxergar a sutileza como o pensamento se estrutura a partir dos fatos de seu momento e da discussão, e como que ele se insere no embate público.
Essa reflexão é entoada a partir da pauta crítica ao Novo Poder e à sociedade de consumo, que atravessa os ensaios reunidos na obra como grande elaboração autoral de Pasolini. O autor empenha uma análise viva, na quentura da lava, de uma mudança histórica daquela Itália campesina e pré-industrial onde ocorreu a ascensão de Mussolini.
No vácuo das velhas estruturas colonialistas, religiosas e políticas começa a se instituir, através dos veículos de massa, e se utilizando de um discurso de liberação social posto nos seus termos, uma nova espécie de autoritarismo, retificado por uma ideologia que atravessa todas as partes da experiência.
As propostas de análise colocadas em Escritos Corsários passam por uma crítica radical dos intelectuais da época e do Partido Comunista Italiano - incapazes, para Pasolini, de articular um comunismo que se oponha às formas trazidas pela sociedade de consumo, em vez de recauchutar a luta contra o fantasma do velho fascismo.
Escritos Corsários é um presente ao leitor que alimenta o desejo de conhecer com mais profundidade - a partir de mais pontos de vista - o multiartista, intelectual engajado que não se encaixou totalmente em nenhuma das militâncias do seu tempo, e filósofo e filólogo, preocupado com o estudo da linguagem e da forma artística, que se consolidou num imaginário cultural como criador iconoclasta, pornográfico e crítico ferrenho da hipocrisia burguesa.
Ao ler esses Escritos, dialoga-se com um Pasolini que se apresenta de maneira totalmente distinta, distanciado da experiência sublime - da sexualidade ou do fervor religioso - que tantas vezes acompanhou sua obra, nem que fosse apenas para ser invertida. Acompanhar tão intimamente esta outra figura, um dos tantos autores que simultaneamente existe em um grande autor, é um prazer, e uma possibilidade de reflexão que se estende para muito além do seu tempo, e que convida para uma leitura compartilhada, na qual se sabe que aquele olhar com que se encontra não diz só sobre o que ficou no passado.
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TÍTULO: Escritos Corsários
AUTOR: Pier Paolo Pasolini
EDITORA: Editora 34
ANO DE EDIÇÃO: 2020
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