\\ CINEMA
A Vida invisível garante uma renovação ao melodrama, gênero caro à teledramaturgia latina, seguindo o rastro deixado por diretores como Ripstein e Almodóvar, além de Douglas Sirk, cineasta alemão expoente do melodrama em Hollywood.
Por Giovana Proença
Em 2019, longínquos tempos em que a quarentena era devaneio de cineastas distópicos e podíamos visitar livremente os espaços da sétima arte, assistimos nas telas espalhadas por salas de todo o país a consagração do cinema nacional, favorecida pelo fenômeno Bacurau. Entretanto, outro nome ganhou destaque por representar o Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: A Vida Invisível, drama de Karim Aïnouz que visa representar a realidade feminina do meio do século XX, permeada por opressões. Tendo como cenário uma exuberante face do Rio de Janeiro, o filme de Aïnouz conquista por tocar a sensibilidade do espectador, emitindo a força arrebatadora dos laços invisíveis que lutam para continuar atados, em atitude de enfrentamento e resistência pelo afeto.
Baseado no romance de Martha Batalha “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, a trama envolve a separação das irmãs Eurídice e Guida. A oposição de suas individualidades – Guida é rebelde e almeja a liberdade; Eurídice é recatada, e expressa-se no talento como pianista – acentua a intimidade e o companheirismo que definem o elo que compartilham. Na primeira grande ação do longa, Guida foge para viver um romance com um marinheiro na Europa. Eurídice casa com Antenor e precisa administrar as obrigações conjugais e familiares com o sonho de estudar piano em Viena, enquanto a irmã retorna grávida e é banida da família pelo pai, de modo que a relação entre elas é abruptamente interrompida.
A Vida invisível garante uma renovação ao melodrama, gênero caro à teledramaturgia latina, seguindo o rastro deixado por diretores como Ripstein e Almodóvar, além de Douglas Sirk, cineasta alemão expoente do melodrama em Hollywood. Aïnouz, admirador assumido dos filmes de Sirk, dosa a melancolia e a intensidade intrínsecas ao gênero, transpondo o enredo de Martha Batalha em um roteiro vívido, aliado a recursos cromáticos afamados pelo cinema estrangeiro. Nunca a fotografia de um filme nacional conquistou tanta aclamação quanto o belíssimo trabalho das lentes da francesa Hélène Louvart nas paisagens do Rio revelado na película.
A exuberância da natureza espalha seus verdes pela tela, combinando-o as cores quentes que transpiram suas intenções, culminando nas emoções desveladas entregues pelas personagens no trabalho de atuação da dupla Carol Duarte e Júlia Stockler. Assim fui arrebatada: as performances transparecem a ausência crônica em presença aguda. Em monólogos essencialmente dialógicos, construídos através das cartas nunca entregues, as atrizes apresentam uma conversa íntima que parece costurar-se olho a olho, na intimidade. A partir dessa colcha de retalhos, expõe-se duas facetas distintas do papel feminino: Eurídice narra suas vivências como dona de casa em conflito com o sonho de ser pianista e Guida mostra o lado B do Rio, o espaço dos socialmente renegados e da boêmia noturna, criando sozinha o filho com empregos no qual adentra um mundo essencialmente masculino.
Unidas pelo invisível laço do afeto, as irmãs transitam pelos mesmos espaços: os sonhos de realizações na Europa e o concreto da desilusão da realidade de solo carioca. Seus cotidianos se desenrolam ao meio, a outra metade permanece presa ao peso da ausência e as tentativas de permanência, agarram-se portanto, as cartas sem resposta como o que restou da presença. Mais do que isso, esperanças sólidas de um reencontro são proferidas a todo momento, levando ao clímax: ao deparar com a falsa lápide de Guida, Eurídice explode toda a selvageria e a emoção reprimida - verde e vermelho. Reflexo da selvagem natureza e da árdua ausência mais presente do que nunca, ao ver suas esperanças desmoronadas, ateia fogo ao piano que a mantinha sã, na mais comovente e expressiva cena de “A vida invisível”, ela finalmente sucumbe às pressões patriarcais.
Fernanda Montenegro nos entrega essa mulher rendida. Nem se houvessem cicatrizes de queimadura resultantes do acesso de fogo ao piano, poderíamos sentir de forma tão aguda as marcas invisíveis que a vida deixou no rosto de Eurídice. Revisitando as coisas deixadas pelo marido morto, ela encontra as cartas de Guida – quem não sentiu uma nostalgia ao relembrar Central do Brasil?- seu passaporte para encontrar a neta da irmã. Também interpretada por Júlia Stcokler, choca-a pela semelhança. Assim e pela leitura das palavras de afeto que encontram sua destinatária após tantos anos, concretiza-se o esperado reencontro. Rebenta a tônica na tela: algumas ausências são permanentes, aliviadas pelos ecos dos laços que negamos a desatar no diálogo surdo. Eurídice esboça um sorriso ao ler as esperanças de Guida de um dia estarem juntas, o filme acaba. Olho em volta, grande parte do cinema tem os olhos marejados. O Oscar não viria, mas o melodrama de Aïnouz se realizou.
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