\\ CINEMA
Alma e Woodcock transformam sua antinomia de luta de contradições em dança. Entrelaçam-se e nos revelam que ninguém nunca é só forte ou só fraco, mas uma ambígua mistura dos dois. Um guia o outro.
Por Isabela Nunes, em colaboração para Frentes Versos
Cena do filme Trama Fantasma.
Com muito tempo livre, a mente tende a divagar. Cabeça vazia é oficina do Diabo, diz o ditado. É cabeça que diabolicamente navega pelos erros do passado, pelas limitações do presente e pelas ameaças do futuro: uma bússola sem norte, à deriva, buscando algo em que possa se agarrar. Para impedir meu inevitável afogamento nesse poço de ócio, tento me agarrar às pequenas coisas em vez de aos grandes pensamentos: livros, músicas, filmes, a luz que bate de manhã no quarto e esquenta meus pés — qualquer coisa que desperte aquele sentimento quente na ponta do coração e o faça continuar batendo inspirado. "Batendo obcecado", no entanto, talvez seja uma expressão melhor. Meu amor pelo que me inspira se traduz, muitas vezes, em uma dedicação obsessiva, um tipo diferente de afogamento. Quando amo, aquilo me toma por inteiro, meses a fio. Gosto de pensar em amar como sugar o suco de uma laranja: uma analogia estranha, mas com isso quero dizer que amor, para mim, é provar cada pedacinho doce que ele pode me oferecer – destrinchar cada gomo, analisar cada semente, me deter em cada detalhe. Amor é experimentar possibilidades e esgotá-las. É prestar atenção. E atenção requer um zelo dedicado, um carinho respeitoso, uma ganância delicada: é uma entrega simultaneamente egoísta e altruísta. Platão, em Fedro, diz acertadamente que cada um escolhe o seu amor de acordo com o próprio caráter e passa a considerá-lo como seu deus: eleva-lhe uma estátua em seu coração, enfeita-o para adorá-lo e celebrar seus mistérios.
Nos últimos tempos, os mistérios de Trama Fantasma, do diretor americano Paul Thomas Anderson, têm sido meu deus, minha estátua elevada, meu colete salva-vidas e o principal objeto de minha obsessão apaixonada. Não sei se entendo por que ele me afeta desse modo, embora seus encantos sejam facilmente percebidos por qualquer um que o assista. Talvez o feitiço venha de sua relação com essa minha concepção estranha de amor à vida e às coisas, talvez de sua beleza atordoante. Talvez venha dos dois. Seja como for, tenho me agarrado a ele e prestado toda a atenção que posso: espremendo o suco, por assim dizer. No processo, aprendi algumas coisas. A primeira delas é que Trama Fantasma tem muito a dizer sobre nós mesmos. A segunda é que tem mais a dizer ainda sobre a forma com que nos relacionamos e sobre o que chamamos de "amor".
Nas palavras do próprio Paul Thomas Anderson, em entrevista à Vulture, o filme tenta capturar o que é estar dentro de um relacionamento. É sobre o que significa estar no banco do motorista e no do passageiro; e, principalmente, sobre como podemos delicadamente trocar esses papéis. O pano de fundo para que essa metáfora se desenrole é o mundo metódico e calculado do estilista Reynolds Woodcock, o qual é mantido sob controle por sua irmã Cyril e lentamente desestruturado depois que ele conhece Alma, uma jovem imigrante. Na Inglaterra dos anos 1950, entre vestidos lindos e uma elegância suntuosa, Alma e Reynolds se emaranham em uma trama que foge à razão; sendo sua complexidade sendo grande parte de sua beleza.
Em essência – e voltando às metáforas – Trama Fantasma é sobre antinomia. Na Crítica da Razão Pura, Kant usa esse termo para se referir a um tipo específico de paradoxo que não se resolve porque parte de duas proposições igualmente coerentes e verdadeiras, mas mutuamente excludentes – uma luta sem fim entre os opostos. À parte meu conhecimento escasso de filosofia ou lógica, é fácil transportar a poesia dessa palavra para as contradições sem conclusão que vivemos todos os dias, nos relacionando uns com os outros. Mais fácil ainda, é aplicá-la à relação de confronto provocante de Alma e Reynolds: cada personagem incorpora um ethos oposto, que os antagoniza e os mantém em eterno embate. Assim, para entender como eles se relacionam e o que têm a nos dizer, é preciso tentar entender quem eles são – tarefa que, dada a quase inefabilidade de Trama Fantasma, não é fácil.
Em uma das pontas da antinomia, Reynolds Woodcock faz subir à minha cabeça a palavra: inflexível. Uma das primeiras coisas que Alma lhe diz é "você parece tão seguro sobre as coisas". Ele demonstra desconhecer o significado da palavra dúvida e, nos pedidos que faz e ordens que dá, nunca hesita nem titubeia; sempre sabe exatamente o que quer. Sabe como gosta de trabalhar, como gosta de começar o dia, como gosta dos seus aspargos preparados. Toda a sua vida é metodicamente organizada conforme sua vontade e ele tem certeza o suficiente sobre quem é para que essa vontade nunca lhe esteja oculta. Por um lado, Reynolds tem essa face hermética e autoritária, mas, por outro, tem um quê infantil. Como um bebê, seu mundo gira em torno de seus impulsos e ele nunca se refreia, nunca se corrige, nunca se questiona sobre seu egoísmo. Nenhuma de suas vontades deixa de ser satisfeita, porque todos em seu convívio – em especial Cyril, sua irmã – são indulgentes com ele. Concedendo seus desejos, pisando em ovos para não o desagradar, o tratam como se ele fosse uma mistura de rei e criança mimada prestes a explodir. O mínimo detalhe que muda em sua vida regrada se torna uma ofensa pessoal. "Sua rotina, quando ele está nela, é melhor não a perturbar", Cyril adverte.
Esse seu lado infantil vai de encontro a uma ideia que encontrei pela primeira vez em outra obra que amo obsessivamente: Graça Infinita, de David Foster Wallace. Em seu livro, Wallace usa jocosamente a noção de Criança Interior, que surge com psicólogos como Marie-Louis von Franz e Carl Jung, para aludir ao narcisismo inerente à modernidade ocidental. Tanto em Graça Infinita, quanto em Trama Fantasma, encontramos personagens profundamente afetados por seu relacionamento próximo e dependente com a mãe: se, na obra de Wallace, Avril Incandenza é a figura materna demonizada, em Trama Fantasma a matriarca da Casa Woodcock é divinizada o bastante para que Reynolds leve um pedaço dela consigo a todo momento, costurado no tecido de suas roupas. Nos dois casos, os personagens têm um complexo materno: a relação de extrema proximidade e intimidade com a mãe é internalizada como um laço psicológico muito resistente; "uma bolha de energia emocionalmente carregada para além do controle do ego", diz James Hollis. Disso, surge uma dependência da figura materna e uma procura pelo círculo protetor, nutritivo e encantado da mãe, que pode ser encontrado em outras mulheres quando não na mãe biológica; principalmente, surge uma busca pela condição infantil de ter todos os desejos e impulsos atendidos, característica muito marcada em Reynolds. Daí que, se o mundo gira em torno do eu e das necessidades divinas do eu, o centro do problema está sempre no outro, nunca em si. Como que tomado pelos impulsos irrefreáveis de uma criança, que atira coisas a esmo e grita sem saber ao certo por que, Reynolds imita Narciso e faz de sua individualidade o principal objeto de seu amor, desconsiderando os sentimentos dos outros em busca da própria satisfação.
"Eu acredito que sejam as expectativas e suposições dos outros que geram mágoa", ele diz. Se sabe muito bem como satisfazer a si mesmo, está pouco disposto a descobrir como satisfazer outrem. Eu desconfio que esse seu egoísmo seja, na verdade, um apego infantil à liberdade infinita de se fazer o que quer, quando quer – seja isso comer aspargos com azeite e sal ou ter completo silêncio no café da manhã. Mas é uma liberdade que esconde a escravidão dos próprios impulsos: ninguém diria que uma criança birrenta atirando coisas a esmo é feliz ou livre, ainda que obedeça a todas as suas vontades. Em certa medida, isso significa que ainda que viva e mande como um rei-menino, Reynolds também é solitário e incompreendido como um rei-menino. Não acho que seja à toa que, em uma das cenas mais tocantes do filme, ele veja o fantasma da mãe e diga: "eu quero te contar tudo". Reynolds age como se fosse impermeável, mas suspeito que ele esteja secretamente aterrorizado. Talvez por isso ele precise de alguém como Alma: porque faz muito tempo desde que pôde descansar a pose tirânica e contar tudo para alguém. Acho que, em verdade, ele quer se desfazer do teatro que dramatiza para si mesmo, do mesmo modo que todos queremos nos desfazer das máscaras que nossas escolhas involuntariamente criaram para nós. Reynolds talvez seja o personagem com o qual me conecto mais intimamente porque me mostra os defeitos que eu não queria ver: em mim — em todos nós, talvez – também se esconde essa vontade de liberdade e satisfação infantis cuja face verdadeira é uma solidão egoísta.
Na outra ponta antinômica, temos Alma, a constante disrupção na Casa Woodcock que interrompe o andar dos dias e revela o que Reynolds tem de mais frágil e sincero. Se Reynolds representa quem eu sou e não queria ser, ela é quem admiro embora não a seja. Sem passado, bagagem ou peso aparente sobre seus ombros, ela é totalmente presente, pulando de momento a momento. Há várias conexões possíveis para o nome de Alma, mas todas são especulações. Há um elo com Persona, de Ingmar Bergman, cuja personagem principal também se chama Alma. Em certas cenas de Trama Fantasma, senti na postura de Alma e Woodcock alguma semelhança com a cena famosa de Persona em que "as duas mulheres que pecam" estão de frente uma a outra, com as cabeças inclinadas. Gosto de pensar que o mesmo elo existe porque, nessa mesma cena, a Alma de Bergman diz: "Jamais serei como você. Eu mudo o tempo todo.". Essa é uma afirmação que se encaixa perfeitamente na Alma de Paul Thomas Anderson, em sua oposição a Reynolds. Enquanto ele é estático, metódico e forte, Alma é tão livre a ponto de abandonar a própria vida e se tornar a musa de um costureiro que acabou de conhecer, da noite para o dia. Reynolds é uma estátua de mármore, fria e imponente; Alma, argila que sempre se transforma em algo novo.
Divulgação:FOCUS FEATURES
eu imagino, às vezes, se o que nos leva a tantas decisões irracionais não é a nossa vontade escondida e impossível de sermos amados incondicionalmente.
Outra possível inspiração para o nome de Alma é Alma Reville, esposa, musa e colaboradora constante de Alfred Hitchcock. Muitos filmes dele serviram de influência para Trama Fantasma, entre eles Rebecca (1940), Suspeita (1941) e Um corpo que cai (1958). Alma e Woodcock seriam, então, uma alusão a Alma e Hitchcock – mas, de novo, são especulações. Em nenhuma das entrevistas que assisti, P. T. Anderson comenta sobre a escolha do nome de Alma. Além de possíveis referências a diretores clássicos, há o significado do nome, que não precisa de referências externas para se conectar à trama: nós, falantes de português, temos o privilégio de ver o filme sabendo que alma quer dizer algo que está em sintonia com a personagem. Soul, no verbete do Cambridge Dictionary, é a parte de uma pessoa que vivencia sentimentos e emoções profundas. Se Woodcock é um poço de clareza, indiferença e falsa objetividade, Alma é seu exato oposto: impulsiva, intensa e subjetividade pura.
Quando ela o conhece, assume o típico papel de mulher nos anos 1950, submissa e subserviente, colocando sua vida e suas vontades sob a hierarquia imposta na Casa Woodcock, onde a palavra de Reynolds é tão forte e final quanto a de Deus. Alma não questiona a posição que lhe foi designada, em nenhum momento, mas a subverte com perspicácia. A rebelião dela é sutil, lenta e indireta. Na primeira vez em que assistimos a Trama Fantasma, esperamos que ela cumpra até o fim seu papel de mulher fraca e que, assim que aumente a tensão entre ela e Reynolds, ela escolha ir embora, aceitando sua derrota. Quando ela não o faz, uma pergunta começa a rondar nossa cabeça e não para nem quando o filme acaba e os créditos sobem: por quê? Por que Alma fica? Quais as razões dela para fazer o que faz? Paul Thomas Anderson deixa todos os porquês em aberto, mas, se prestarmos atenção, a essência de Alma nunca esteve escondida. Ela aceita o papel de mulher dominada que lhe foi dado, mas nunca se contenta com as sutilezas dele ou disfarça seu descontentamento. Desde fazer barulho no café da manhã ou cozinhar os aspargos e cogumelos na manteiga que Reynolds detesta, Alma não abre mão do que quer e, nesses seus pequenos momentos de revolta, nos deixa entrever quem realmente é. Ela se iguala a Reynolds em sua imperfeição perigosa e resiste a ele sempre que pode.
Em um dos primeiros diálogos do casal, Alma começa dizendo: "Se você quer uma competição de quem olha mais fixamente, você vai perder", ao que Reynolds responde com um leve aceno de cabeça e um sorriso. Há aquele ditado que fala que os olhos são a janela da alma. Bem, se assim for, os olhos e o aviso de Alma contam já no início o segredo que só nos é revelado mais tarde, quando percebemos que a subestimamos terrivelmente: ela não é alguém que desiste. Alma transmuta as interferências externas em algo próprio, convergindo com algo que Sylvia Plath disse uma vez em seus diários: “Vocês todos, saibam ou não, tendo entrado na trama da minha vida e saído de novo, deixaram uma parte transitória de vocês que eu transformarei em algo. (...) Através de mim, a transmutação". Em uma ambiguidade estranha e antropofágica, ela dá tudo de si e se enche de vazio para se preencher de novo, depois, com o que recebe. Ouve e obedece, mas para transformar essa obediência em algo inteiramente
diferente e seu. Alma não é forte como Reynolds é forte. Ele se impõe pela rudeza e pelo ímpeto controlador; ela, pela sutileza e perseverança. Através dela, uma passividade ilusória transmutada em força incontestável.
Usando o confronto de Alma e Reynolds como meio, Paul Thomas Anderson quis mostrar o que é estar em uma relação com alguém e destrincha, aqui, as dinâmicas de poder que nela existem: a luta constante dos opostos. Anderson, no entanto, não foi o primeiro a se aventurar nesse tema. Em A Insustentável Leveza do Ser, por exemplo, Milan Kundera causou verdadeiros abalos sísmicos nas almas de jovens garotas que, como eu, são um tiquinho sensíveis ao tema do embate entre os opostos nas relações humanas. Kundera disse, apresentando o par antinômico que seria o fio-guia de seus personagens, que "a contradição pesado-leve é a mais misteriosa e ambígua de todas as contradições”. Para ele, a ausência de um fardo para carregarmos nos torna mais leves que o ar, faz-nos voar, torna nossos movimentos tão livres quanto insignificantes. "O que escolher, então? O peso ou a leveza?", ele pergunta.
Para mim, a questão é menos de escolha do que de impulso interno. Algo nos faz ansiar pelo frio do chão quando estamos apreciamos a vista dos céus. O mesmo algo que nos faz olhar para atrás, como Orfeu, e, num piscar de olhos, desmaterializar Eurídice. Algo em nós precisa do fardo. A leveza é insustentável porque é impossível. Somos escravos do nosso egoísmo, mas também da parte de nós que deseja, com avidez, ser puxada para baixo quando estamos flutuando. Não é à toa que, em resposta peripatética à pergunta de Kundera, todos os personagens criados por ele acabam se decidindo pelo peso – de modo não tão diferente de Alma, que escolhe ficar na Casa Woodcock mesmo com todos os motivos para ir embora, ou Reynolds, cuja entrega tem o peso que mais nos gera estranheza.
Não discordo de Kundera quando ele diz ser a contradição pesado-leve misteriosa e ambígua, mas acredito que Paul Thomas Anderson tenha se aproximado de uma contradição com ainda mais mistério e ambiguidade: a contradição força-fraqueza. Trama Fantasma se apropria dela com uma originalidade sutil e brilhante: todos os papéis hierárquicos que pensamos serem claros no começo – Reynolds, o "forte"; Alma, a "fraca"; Cyril, a governanta má – se emaranham e nos provam terrivelmente errados. Minha paixão talvez venha daí, também: o filme resiste às expectativas e pede, de novo e de novo, que o revisitemos. Quanto mais o entendemos, mais percebemos o quão próximo de nós está. Quando os créditos sobem, as perguntas que ficam são as mesmas que podemos nos fazer, se estamos sendo honestos com as relações que tivemos: o que nos faz ficar? O que há no outro que precisamos tão desesperadamente a ponto de não desistir nem nas situações mais extremas, e vice-versa? Eu imagino, às vezes, se o que nos leva a tantas decisões irracionais não é a nossa vontade escondida e impossível de sermos amados incondicionalmente. A vontade de que alguém nos conheça através do nosso pior e decida ficar mesmo assim, livres do peso por um momento, mesmo que a leveza seja insustentável. Se Trama Fantasma pode ser lido como um retrato extremado de relacionamentos reais, então talvez seja sobre as escolhas doentias, irracionais e masoquistas que fazemos em busca daquele estado de harmonia tácita, ainda que perigosa, onde você pode finalmente respirar e se mostrar completamente vulnerável. O estado harmônico entre corpo rendido e sorriso de alívio que vemos em Reynolds nas cenas finais: o peso e a leveza, juntos; sem disfarces, todas as distâncias cortadas, todos os segredos revelados.
O mal que infligimos a nós mesmos e ao outro parece diminuir de tamanho se comparado a essa sensação de ser decifrado e conhecido por inteiro, de não estar sozinho. A solidão, ou a fuga dela, tem um papel significativo aqui. Na verdade, acho difícil imaginar algum relacionamento em que ela não seja significativa, o que talvez revele um pouco demais sobre mim e meus próprios relacionamentos. Sei que é dela que vem meu amor obsessivo por Graça Infinita ou Trama Fantasma, ao menos: enquanto me entrego por completo a algo externo a mim, fujo de meu egoísmo, de minhas incertezas e do mar de passado, presente e futuro para onde minha mente divaga quando está vazia e sozinha. Amor, às vezes, também é fuga de si; fuga dessa individualidade narcísica que confundimos por liberdade. Acontece que fugir nem sempre funciona – e é por isso que buscamos alívio nessa entrega pesadamente leve que é a sensação de compreender e ser compreendido por alguém diferente de nós. A meu ver, é a solidão de não ser entendido que nos impele ao outro. Se temos isso em mente, é menos difícil entender por que Alma e Woodcock, dois personagens solitários, se emaranharam em sua bagunça como fizeram. Alma, sem família, sem passado, jogada em um país que não é o seu e em uma casa que não é a sua, onde todos os outros parecem viver em sintonia perfeita; Woodcock, mantendo o fio de sua vida regrada, mas sozinho do alto do estrado que construiu para que pudesse pertencer apenas a si mesmo.
É fato que a solidão, sozinha, não explica por que eles chegaram nos extremos que chegaram, ou por que permaneceram juntos se tão claramente irritavam um ao outro. Não explica a pergunta: por que eles se escolheram, e não a outra pessoa? O filme nos dá indícios de que muitas outras mulheres passaram pela vida de Woodcock e saíram sem deixar marcas, mas a única que teve um efeito poderoso foi Alma. Por que ela? E, para ela, por que Woodcock? Por que eles perseguem essa relação antinômica, que demanda um esforço inimaginável de cada um deles, em vez de abandoná-la e encontrar uma menos complicada?
Acho que é aqui que Trama Fantasma tem mais a nos dizer sobre o amor. Nietzsche, em um dos aforismos d'A Gaia Ciência, diz que amor e ganância – talvez mesmo amor e inveja – são dois lados da mesma moeda: o nome do primeiro vem do desejo de quem procura algo; o do segundo, do medo de quem já tem muito. Denominações diferentes, mas que, em essência, são sobre a mesma coisa: vontade de mais. É curioso pensarmos, nos nossos relacionamentos, o quão frequente é escolhermos pessoas radicalmente diferentes de nós. E talvez isso seja porque, no outro, vemos algo que nos falta, algo que queremos, algo que precisamos. Talvez seja porque o amor esconde essa ganância apaixonada que é vontade de se refazer através do outro, antropofagicamente: a busca por tornar nosso o mais inspirador que existe em outrem.
Para Reynolds e Alma, imagino que seja o caso. Reynolds tem fome de alguma coisa e há nele um quê de amaldiçoado, incurável, irreparável. Ele só parece se atentar para o amor que recebe dos outros quando está vulnerável, o que raramente acontece. Isso se opõe à entrega completa de Alma em tudo que faz e em seu amor por ele. Reynolds quer se entregar e também quer ser cuidado e amado. Quer aqueles momentos em que não é mais o Reynolds Woodcock tirânico, hermético e odiável, mas alguém que, em sua vulnerabilidade, ama e é amado com devoção. Quer quebrar uma maldição. E Alma, incerta e aberta, quer a segurança que Woodcock tem sobre si e sobre o mundo. "Estar apaixonada por ele desmistifica a vida", ela diz. Ela deseja aqueles momentos de falta de dúvida; quer continuar sentindo o que Reynolds a faz sentir. "Em suas roupas, eu me torno perfeita. E eu me sinto certa". Alma quer se sentir certa. No âmago do paradoxo que formam, os dois escondem uma admiração secreta e uma vontade de serem mais como o outro.
Dessa busca pelo que falta em si, e pela fuga da solidão, e pelo amor incondicional de alguém, surge esse par curioso e estranho. Alma e Reynolds são espelhos para as partes de nós que não queremos ver: o egoísmo, a obsessão, a competição eterna pelo domínio sobre o outro. Mas também refletem nossa ganância apaixonada cuja beleza é inexplicável. Paul Thomas Anderson usa uma analogia estranha – ainda mais estranha do que a que tentei fazer no início desse texto – para nos dizer o que ele acha ser o amor, uma concepção parecida com a que tenho: uma entrega simultaneamente egoísta e altruísta cuja leveza é o próprio peso. Alma e Woodcock transformam sua antinomia de luta de contradições em dança. Entrelaçam-se e nos revelam que ninguém nunca é só forte ou só fraco, mas uma ambígua mistura dos dois. Um guia o outro. É por isso que eles ficam. Para que possam continuar sendo guiados, nessa antinomia dançante, pela única pessoa que pode lhes levar para mais perto e mais longe de si mesmos ao mesmo tempo.
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