top of page
Últimas: Blog2
Foto do escritorTomás Fiore Negreiros

20 anos depois, 'Homem Fumaça' continua atual e necessário

\\ ARTE

Há 20 anos, o Planet Hemp, a partir da figura do Homem Fumaça, colocava em evidência a importância do engajamento político e social dos artistas, especificamente quanto à defesa do direito à liberdade de expressão.

Por Tomás Fiore Negreiros


"A Invasão do Sagaz Homem Fumaça" (2000), arte de Marcello Quintanilha.
A primeira emenda da sua constituição
Eu uso pra fazer a minha revolução
Com o microfone na mão, então preste atenção, sangue bom
Os cães ladram mas a caravana não para
Dispara com a metralhadora e não falha
Então se segura na cadeira, Planet Hemp na área

Há 20 anos, era com essas palavras que Marcelo D2 inaugurava aquele que seria um dos álbuns mais aclamados do Planet Hemp: “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça”.


Apesar da data especifica do lançamento do álbum ser desconhecida (provavelmente se tornou fumaça ao longo dos anos), sabe-se que o disco foi lançado em 2000 pela gravadora Sony Music. Contando com a participação de nomes como Marcelo D2, BNegão, Gustavo Black Alien, Formigão, Pedrinho Garcia, Rafael Crespo, Zé Gonzales, Seu Jorge, Daniel Ganjaman, entre outros … “A invasão do Sagaz Homem Fumaça” é o terceiro e (até agora) último álbum de estúdio do Planet Hemp.


É muito difícil não associar o sucesso de “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça” ao fato de ter sido o primeiro disco do Planet Hemp lançado depois da banda ter sido detida em 1997; naquele ano, após um show em Brasília, os integrantes do grupo foram detidos pela polícia sob a acusação de estarem fazendo apologia às drogas e estarem realizando associação de pessoas para uso de drogas (respectivamente, artigos 12 e 18 da Lei de Entorpecentes vigente na época).


Após uma ampla movimentação da classe artística e da sociedade civil, os integrantes do Planet Hemp foram soltos cinco dias depois. O evento foi bem repercutido na mídia, o que fez com que os membros da banda saíssem da prisão mais famosos do que entraram. Anos depois, “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça” era lançado, firmando a fama e — por quê não? — a “mística” que se criou sobre a banda carioca, reverberando até os dias de hoje.


Integrantes do Planet Hemp detidos em 1997 (Reprodução/ Instagram).

Mas, mais de 20 anos depois, qual a relevância de ainda se escutar “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça”? Será que, mesmo produzido em um contexto diferente do atual, o álbum ainda nos diz algo sobre o Brasil caótico, pandêmico, neofascista e racista em que nos encontramos?


Bom. Para responder a tanto, apenas ouvindo o disco:


Os primeiros minutos de álbum são dedicados à contextualização dos fatos. Ouvimos e somos ambientados sobre aquilo que ocorria na história do Planet, e do Brasil, naquela virada de século. Ironicamente intitulada de “12 Com Dezoito”, a faixa inicial é o cartão de visitas da banda sobre o que o restante do disco promete:


Esse é o início da batalha do século
Ilusão versus realidade, cumpadi
Te escondem a verdade
Código penal ultrapassado
Ditadura cultural, hipocrisia, pura mediocridade
12 com dezoito, 12 com dezoito é o caralho!   

Enquanto Marcelo D2 e BNegão disparam versos rápidos, ao longo da música são intercaladas colagens de matérias jornalísticas que anunciam o evento de 1997 e suas repercussões. Somos tomados de assalto pela quantidade de informação e elementos presentes na faixa, conforme vamos entrando na atmosfera do disco e escutamos aquela retrospectiva dos últimos episódios; crescendo a tensão e expectativa por um desfecho triunfal. Quando de repente anuncia-se:


Adivinha doutor, quem tá de volta na praça? 
Planet Hemp, ex-quadrilha da fumaça!

Eis que Planet Hemp ressurge como um bombardeio aéreo. Uma verdadeira “Ex-quadrilha da Fumaça” anunciando o retorno da banda. Eles chegam por cima, de surpresa. E quando nós, ainda no “12 Com Dezoito”, começávamos a entender um pouco do que se tratava, somos surpreendidos por mais uma mudança súbita.


Mas o Planet Hemp não vem desacompanhado; junto com a banda está aquele que dá título ao álbum: o Homem Fumaça.


Mas quem seria essa figura?


Representado pelo artista Marcello Quintanilha na arte da capa do álbum, o Homem Fumaça (talvez o primo carioca do Homem Caranguejo de Josué de Castro e Chico Science) é aquele sujeito malandro da capital fluminense. Malandro, não porque engana os outros, mas porque, apesar das adversidades da realidade como cidadão periférico, ele consegue sobreviver e cuidar dos dele; algo que pode ser considerado um ato heróico.


É justamente o Homem (ou a Mulher) Fumaça aquele cidadão que vive a cidade, fazendo suas funções, tocando sua vida, fumando até a última ponta e cantando o que quiser. Caminhando pelas ruas e habitando o Rio de Janeiro, BNegão, em “Hc3”, descreve o modo como o Homem Fumaça se desloca pelo espaço urbano:

Vou guiando pela cidade vou, quebrando os vidros
Sem sentido algum, ocultado pela fumaça
Que me leva mais longe que qualquer motor
Aumento a velocidade, eu vejo tudo mas ninguém me vê

É nessas suas andanças, nesse seu olhar “despretensioso”, que está a sagacidade do Homem Fumaça; afinal, ele não é visto, mas vê tudo: ele vê a violência e corrupção policial, na qual não se sabe quem é polícia, quem é milícia e quem é ladrão; ele vê Gustavo Black (ou talvez Guilherme Silva Guedes, George Floyd, ou tantos outros) ser "Test Drive de Freio de Camburão" por usar um dread; ele vê o povo que paga com o corpo e com a alma o descaso de seus representantes políticos; ele vê a população em estado de coma semiprofundo, alienada quanto aos verdadeiros interesses dos bancos e das grandes corporações; ele vê a sequela que é a monocultura, herdada da época da colônia...


Ele vê tudo, mas não é indiferente, ou naturaliza, todas essas desigualdades e opressões que assolam o seu dia. Como é cantado na faixa "O Sagaz Homem Fumaça":


Eu sei muito bem que a vida não é um conto de fada
Eu uso minha cabeça e ela nunca pode tá parada
Pra não cair em cilada, eu ando sempre em frente
Eu não sou de briga, mas protejo a minha gente

Ao trazer à tona a figura do Homem Fumaça para o seu álbum o Planet Hemp dá voz para que esse tipo urbano exponha a sua visão sobre a realidade. Dá voz para que ele possa falar tudo isso que ele vê e vive cotidianamente: falar não, cantar. A final, o próprio verso de Marcelo D2, em “É Isso Que Eu Tenho No Sangue…” fala sobre o potencial da música como forma de expressão e estratégia de enfrentamento às adversidades e opressões existentes:


Hip Hop é o ar que eu respiro
a sabedoria de quem não precisa resolver mais no tiro
é o Dj, B-boy, Mc, Grafiteiro
é isso que eu tenho no sangue, o Hip Hop verdadeiro.

O Homem Fumaça do Planet Hemp encarna o potencial da música como arma para lutar contra a opressão, as desigualdades, e como uma forma de conscientizar aqueles que o ouvem. Mas, mais do que isso, o disco coloca em discussão a importância de artistas engajados e comprometidos com a sua realidade ocuparem esse lugar de destaque em que podem fazer uso do microfone.


Não podemos deixar de pensar que esse lugar de destaque é exclusivo e que poucos chegam lá: imaginem quantas “pessoas fumaça” têm tanto para falar mas não são escutados ... Mas, o que o Homem Fumaça parece colocar em discussão é como podemos usar deste lugar de destaque e qual mensagem transmitir a partir dele.


Ao poder fazer uso do microfone, o Homem Fumaça é tão barulhento quanto uma multidão. É justamente neste momento, neste lugar de destaque que ocupa, que, por meio da sua música, o Homem Fumaça pode falar sobre o que ele vê e exigir respostas para suas inquietações: Qual a procedência do dinheiro do patrão? Quem mandou matar Marielle e Anderson? De onde vêm arma e munição? Quem escondeu o Queiroz? E os 600 reais da população?


E é assim, tocando o seu Raprockandrollpsicodeliahardcoregga (único termo capaz de descrever o estilo da banda sem ser simplista) que o Planet Hemp joga a fumaça para o alto e dissemina a sua mensagem. É com esse estilo que o Homem Fumaça expõe aos quatro cantos do Brasil a realidade social que ele, e grande parte da população, vive, fazendo a conexão entre o morro e o asfalto, e criticando as hipocrisias das autoridades.


Rimando sobre a sua vida normal de cidadão de terceiro mundo, cantando sobre o seu cotidiano, enquanto pergunta para a plateia "Quem tem Seda?". É nessa atuada que o Homem Fumaça faz aquilo que a esquerda elitista e academicista falha constantemente: abrir um espaço de diálogo e conscientização, convidativo para a população que não frequenta as mesas de debates acadêmicas, ou que não esta a par dos últimos conceitos e teorizações pós-pós-modernas sobre o pensamento de tal autor.


O Planet Hemp conscientiza ao falar sobre o dia a dia do Homem Fumaça, e assim dialoga com o cotidiano de seus interlocutores, que podem se identificar e se sentirem representados pelas músicas.


Claro, a banda tem um discurso muito forte (e importante) sobre a legalização da Cannabis, mas parece uma visão simplista acreditar que as suas músicas querem falar só sobre fumar maconha. Mais do que isso, seus álbuns estão carregados de críticas e contestações sobre as desigualdades sociais brasileiras e a luta pelo direito de expressão. Sendo que grande parte dessas questões podem (e devem) ser abordas a partir da discussão sobre a legalização da maconha, uma vez que racismo, desigualdades sociais e a política proibicionista, são fenômenos sociais que se atravessam e se determinam.


Imagem/reprodução: Acervo Folha.

Nesse sentido, “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça” parece trazer uma crítica acentuada sobre a questão da liberdade de expressão e as hipocrisias que assolam nosso país. Não essa liberdade de expressão tosca e irresponsável defendida por Bolsonaro e seus apoiadores. Mas sim o direito a se expressar, de falar aquilo que não é dito, de evidenciar as condições de vida que grande parte da população se encontra, e as altas esferas do poder ignoram; expressar essas con(tra)dições e hipocrisias, para que então, a sociedade possa se responsabilizar sobre aquela realidade que não pode mais ser negligenciada.


Sendo assim, respondendo ao questionamento levantado no início deste texto, afirmo que “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça” continua tão atual e relevante quanto há 20 anos atrás. O álbum nos lembra da importância dos músicos, e dos demais artistas, de jogar luz sobre aquilo que muitas vezes está encoberto e, mais ainda, de enfrentar e perverter toda a realidade e forças reacionárias que reprimem o povo e suas lutas por melhorias nas condições de vida.


Especialmente nos dias de hoje, quando a crise decorrente da pandemia acentua ainda mais as desigualdades já existentes da nossa sociedade (abordei essa questão com maior profundidade no ensaio "Diferentes modos de se morrer uma morte rubra"), ouvir “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça” se faz cada vez mais necessário para refletir sobre a importância do engajamento social da classe artística. Afinal, ao se engajarem criticamente com a realidade que retratam, esses artistas fazem com que suas artes se disseminem igual a fumaça: impregnando e se esgueirando por aqueles cantos mais profundos e obscuros que são ignorados pelo poder público e as classes mais privilegiadas.


Há 20 anos, o Planet Hemp, a partir da figura do Homem Fumaça, colocava em evidência a importância do engajamento político e social dos artistas, especificamente quanto à defesa do direito à liberdade de expressão. São justamente esses artistas que nos relembram a relevância da arte como forma de resistência contra qualquer forma de opressão, exploração ou desigualdade contra as populações negras, periféricas, LGBTQIA+,... São justamente esses artistas que nos fazem sonhar e vislumbrar novas realidades. E assim, cantam:


Vários irmãos se recolhem, vão em frente
Vários também escravizam sua mente
Eu sei bem, quebro a corrente
Onde passo, implanto a minha semente
Gafanhotos nunca tomam de quem tem
Predadores, senhores que mentem
Esperem sentados a rendição
Nossa vitória não será por acidente

Comentarios


bottom of page