\\ ESPECIAIS
Nos doces morangos, há o mofo. Em algum lugar, frescos morangos vivos. Essa é a dualidade de Caio Fernando. Na solidão latente, há uma mão estendida à frente
Por Giovana Proença
As vísceras da literatura brasileira se reviram na escrita direta das mãos de Caio Fernando Abreu. 1948, ano do Rato no horóscopo chinês, Caio Fernando nasce em Santiago, no Rio Grande do Sul. Virginiano, chega ao mundo em setembro. No mesmo ano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é adotada pela Organização das Nações Unidas. Coincidência ou predestinação dos astros, a astrologia e a identificação humanitária da sociedade à margem perpassam vida e obra do escritor gaúcho.
“Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul. Respirei fundo. O ar puro da cidade lavava meus pulmões por dentro. Setembro estava chegando enfim.” - ‘Quando setembro vier’, crônica publicada n’ O Estado de São Paulo, 27/08/1986
A literatura, mais do que vocação, foi o trabalho de vida de Caio Fernando. O autor chegou a cursar Letras e Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas abandonou ambos para dedicar-se ao jornalismo e por devoção à escrita criativa. O primeiro romance Limite Branco (1970), tem como plano de fundo os anos iniciais da ditadura militar, rascunhando a repressão que marca presença na obra de Caio. Com traços autobiográficos, anseios da passagem da juventude para a vida adulta se unem a temas que consagrariam o escritor na fase madura de sua carreira.
A estreia de Caio como contista acontece com o Inventário do ir-remediável, publicado em 1970. Os inventários catalogam os temas típicos do autor em sua trajetória: a morte, a solidão, o amor e o espanto desfilam; ora carnavalescos, ora fúnebres. Os animais e a tônica lispectoriana de elevação flutuam sobre a coletânea. Caio define o inventário como a base dos livros seguintes. Vinte e cinco anos depois, em revisão e confrontamento do tempo, Abreu adiciona um hífem ao ‘irremediável.’ “Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri.” Irremediáveis eram a queda e a morte derradeira? O próprio Caio Fernando tinha dúvidas
Em longa carta escrita para Hilda Hilst, relendo seus escritos, Caio cita “O ovo”, conto que integra os inventários da morte “De tudo que escrevi só reconheço como libertação ‘o ovo’ [...] ‘O ovo’ transcende essas fronteiras e vai até o absurdo.” Com “O ovo”, temos um novo limite branco em cerco de repressão. A maior parte dos contos de Inventário do ir-remediável foi escrita na Casa do Sol, onde com a instituição do AI-5, o escritor abrigou-se a convite de Hilda, que chamava carinhosamente de Unicórnia. No templo de criação hilstiano, Caio teria tido um pedido atendido pela mítica figueira mágica, em torno da qual Hilst construiu a casa.
A década de 70 marca a profusão de contistas brasileiros. Caio Fernando Abreu emerge como destaque na sua geração. Ícone da contracultura, seus escritos equilibram a representação e o fantástico que beira o mágico, caro à literatura latino-americana. Os opostos em direção ao mesmo rumo: a realidade. Lygia Fagundes Telles, espécie de madrinha literária de Caio, apontou a loucura lúcida, que bem resume o jogo entre realidade e fantástico na obra do autor gaúcho. Sobre O ovo apunhalado (1975), Lygia aponta: ele renova o gênero e assume a emoção. Revela um mundo de sofrimento. “De piedade. De amor.” Se a grande dama da literatura brasileira diz, quem ousa contrariar? Para o caso de algum corajoso se manifestar, deixo aqui “Os poços”, conto que abre o livro, cuja condensação permite o registro.
“Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê."
Se para nossos escritores de hoje, o padrão “sexo, drogas e rock’n roll” configura uma fórmula blasé, Caio ousou ao moldar imagens do lado B da cultura brasileira, herança do movimento hippie. A partir de Pedras de Calcutá (1977), a juventude que vê a liberdade desregrada em resposta ao regime de repressão, ganha papel na literatura. É como se a sociedade olhasse no espelho para vislumbrar sua faceta dark.
Morangos Mofados, de 1982, é um capítulo à parte no conjunto da obra de Caio Fernando Abreu. Mais do que nunca, temos o retrato emoldurado da geração de 80. Limítrofe, fronteiriça como a própria Santiago do escritor gaúcho. O cenário é colocado em ação, ícones culturais da década são referências nos contos.
A vivência homossexual marca narrativas conceituadas do autor. O olhar de soslaio e os encontros furtivos, longes das vistas. Mas Raul e Saul escolhem ser infelizes para sempre, como narrou Caio no desfecho de “Aqueles dois”. A astrologia orienta encontros. Ao mesmo tempo que os astros são definidores de ocasiões, o horóscopo é diário. A melodia dos Beatles ao fundo na rádio, casualmente.
Em “Sargento Garcia” duas repressões são paralelas. O abismo hierárquico entre Garcia, o sargento, e Hermes aponta o colossal esmagar de jovens homossexuais e da própria ditadura militar. A violência paira suspensa como pedras sob o livro. Em certos momentos, desmoronam. Manchas vermelhas escorrem pelas páginas. Morangos ou sangue? A melodia dos Beatles ao fundo na rádio, um estrondo denuncia o tiro no crânio de John Lennon.
Nos doces morangos, há o mofo. Em algum lugar, frescos morangos vivos. Essa é a dualidade de Caio Fernando. Na solidão latente, há uma mão estendida à frente. A dupla geração da década de 80, que em meio a repressão, vislumbra a abertura iminente, encontra seu retrato. Uma voz que grita em meio a liberdade mofada pelos anos de regime.
“Não vou perguntar teu nome, nem tua idade, teu telefone, teu signo ou teu endereço”, ressoa a voz em “Terça-feira gorda”, de Morangos Mofados. O encontro gay se dá longe dos olhares e sem intenção de familiaridade ou abertura para o conhecimento. A imagem da homossexualidade oculta e socialmente contida foi captada por Caio Fernando.
Duas facetas são confrontadas em “Pela noite”, novela de Triângulo das águas (1983). Santiago e Pérsio - jovens que se ocultam por trás dos codinomes - dão um giro pela cena gay da metrópole. Mais do que a vida noturna de São Paulo, trafegam por uma via de oportunidade para o amor, capaz de aplacar a solidão. Um se entrega a vida libertina, o amor entre dois homens, para ele, sempre resulta em algo sujo. O outro, seu oposto, conheceu o antigo parceiro por uma leitura de Clarice Lispector. No passado, fica a sensação de fracasso. Para o futuro, todas as possibilidades estão instauradas pelo encontro.
“Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce!”, marca o tom otimista do conto que nomeia a coletânea Os dragões não conhecem o paraíso. Ele e o volume seguinte Ovelhas negras se consagrariam pelo Prêmio Jabuti. A faceta romancista de Caio se manifesta em Onde andará Dulce Veiga? (1990), que inspirou o filme dirigido por Guilherme de Almeida Prado. A busca, que cerca todo o romance, também reforça a procura por identidade e pertencimento.
As crônicas de Caio Fernando Abreu revelam a força banal de uma escrita cotidiana. Caio Fernando e a amiga Ana Cristina Cesar compartilharam a ousadia para romper com padrões estabelecidos da literatura. Em crônica publicada pelo Estado e reunida no volume A vida gritando pelos cantos, Caio escreve sobre a amiga. Ele frequentemente dedica seus contos a suas relações, Morangos Mofados é ‘à todos meus amigos mortos’. Mas Ana C. mereceu um texto só para ela. “Fica esta dor de saber que toda a literatura perdeu o prenúncio de sua maior voz poética contemporânea. [...] Ficou ainda um buraco, um vácuo, solavanco na continuidade. Cartas, poemas. Vestígios, souvenirs. Palavras, nossa asa e arma. Às vezes mortíferas, sabes?”
Sensação semelhante deixou o próprio Caio, “O escritor da paixão” - como alcunhou Lygia Fagundes Telles - para a literatura brasileira, quando morreu aos 47 anos, em 1996. Seus vestígios continuam aqui. Escritos esparsos, volumes de livros, citações que nunca proferiu, mas ainda assim são atribuídas à ele. Em cada encontro astrológico, cada canção alternativa e diálogo desconcertante. Acima de tudo, na solidão implacável. Um pacto silencioso entre seus leitores, que experimentam o amparo por suas linhas. Afinal, para Caio Fernando Abreu, estamos todos sozinhos. Um suspiro e os morangos estão lá, vermelhos e frescos. Um olhar e o mofo se alastra. Há solidão, mas também doses de esperança. Leitor, tome cuidado ao pegar o livro, as veias viscerais da literatura de Caio escorrem como sangue. Ou talvez, sejam só os morangos.
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