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Retomar a essas vidas a dimensão de vida só será possível quando forem ouvidas essas vozes do corona
Por Bruno Pernambuco
O presente, já diria Marx, está sempre prenho de seu futuro- e as crises do sistema podem, muitas vezes, ser uma cesárea muito precisamente executada. Já nos idos de março, o filósofo alemão Hans Ulrich Gumbrecht alertava, em artigo no site do canal Welt: a epidemia é um motivo clássico da literatura europeia, e aquilo que é muitas vezes uma exploração detalhada da morte e da insanidade, e da aniquilação da ordem social, é também campo sempre propício a uma ampliação da experiência, e à invenção, especialmente pelas mãos dos jovens. Revisitando Boccaccio, o recado é extremamente claro: quando a vida está sob risco e o contato extremamente próximo com a morte é relembrado, o coração conhece caminhos- implícitos, subreptícios- para deixar crescer, entre as ruínas, aquelas plantas novas cujas sementes, invisíveis, já trabalhavam.
No momento atual que é sobretudo de indefinição, de ambivalência e de falta de referencial- um momento, fora o acúmulo de crises sociais, de desamparo político e individual- a previsão da mudança certamente se faz bem acertada. Não como um horizonte claro de uma cisão radical- embora muito justamente se fale em impeachment, em ação direcionada para manter o estado democrático, e em revisão de estruturas racistas e classistas- mas nas reflexões de uma caminhada solitária e calma por essas fotografias do passado, e na abertura desses movimentos profundos da individualidade. Como com os amantes do Decamerão, é muito difícil prever, e mais do que isso é inútil querer definir exatamente o que essa mudança trará. Esse é mais um caso em que só a partir do futuro se pode entender o sentido do passado, e enquanto se mobilizam novas ideias, novos projetos e planos a todo vapor para ocupar de maneiras novas esses espaços que tiveram seu sentido transformado, é importante reconhecer os próprios limites, e perceber como em muitos momentos não há nada que se possa fazer a não ser deixar que essas visitas cheguem, e fiquem ou passem; deixar essas mudanças acontecerem.
Em seu artigo, além do ápice classicista com Boccaccio, Gumbrecht resgata, como não poderia deixar de fazer, o cânone moderno, com Morte em Veneza, de Thomas Mann e A Peste, de Albert Camus. Com essas duas obras, revisitadas à exaustão nos últimos meses, últimos botes, talvez, aos quais podem se agarrar os grupos intelectuais, o filósofo recupera o sublime, na reflexividade, na intensidade dos sentimentos e no derradeiro encontro com a morte de Gustav von Aschenbach e Jean Terroux. É essa dimensão que parece nos ter abandonado, quando o cansaço dos últimos meses, o costume à situação de isolamento, adaptando todas as ações à distância, e a resignação, inevitável, fazem abandonar o sentido das notícias, e murchar aquela sua força comovente, causadora de indignação. Retomar a essas vidas a dimensão de vida só será possível quando forem ouvidas essas vozes do corona. Quando, depois dos escombros, falarem, e contarem a sua própria história, aqueles que viveram na pele os efeitos do vírus- em sua grande maioria, aqueles que, já antes da pandemia, o governo se esforçava em deixar com pouco mais que a própria sorte. Os fios condutores, no momento, apontam que essa história não ficará calada. Que está chegando, e pronta para ser dita.
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