\\ ESPECIAIS
“Se eu for dar um conselho pra quem faz cinema- vale pra quem quer escrever também — é não ter preguiça. Você quer fazer uma história, faz três, quer fazer dez, faz cem. Assim você cria desapego, e vai perdendo o ego. Você vai ter de se dar espaço pra poder evoluir. Na arte você está num campo que é o tempo todo da discussão, tudo o que você faz é discutido, posto em pauta”
Por Bruno Pernambuco
No prefácio de Quando o Sangue Sobe à Cabeça Anna relembra os anos de saída da faculdade, o início do governo Collor e o baque do fechamento da Embrafilme, que por uma década estancou o cinema brasileiro. Nesse período foram gestados os seis contos do livro além de outra vintena que, com admissão da autora, não sobreviveu ao processo de revisão. E a mesma coisa se avizinha, de novo, com as mudanças recentes? “É muito parecido com a situação de 1992. O governo ainda quer acabar com o cinema. Hoje em dia isso é mais difícil, por algumas questões. Em parte você tem outros recursos, outras garantias, como o Fundo Setorial. Mas o cinema mudou muito. Hoje em dia, com o Netflix, e com as séries, a relação das pessoas é outra.”
A transformação do cinema, do meio em que a estudante recém-formada encarava até hoje deixou uma marca profunda, trazendo um permanente olhar questionador constante sobre seu próprio progresso. “Hoje em dia quem faz faculdade de cinema vai ter emprego, e não precisa, necessariamente, fazer filmes, pode fazer séries, produzir outros conteúdos. Quando eu entrei na ECA, o aluno de cinema era uma espécie de Dom Quixote, romântico. Nós íamos trabalhar com algo que se presumia que tinha acabado. Na primeira aula os professores diziam sempre, ‘vocês querem fazer cinema? Sabem que vão acabar como caixa de supermercado, não sabem?’”
Muita coisa mudou desde então. “Naquela época tinham muito poucas mulheres no curso, e poucas vozes femininas dirigindo. Era uma geração muito influenciada por essa figura masculina do autor, e um efeito disso era que a gente tinha muito presente essa imagem de um diretor autoritário, mandão e cruel. Hoje em dia se abriu mais espaço para uma direção comunitária”.
Esse outro caminho, diz a cineasta, se tornou uma marca de seu trabalho recente. Tudo, desde o convite para a nossa conversa, apontava para esses meandros do passado, mas Anna deixa claro que está interessada no novo, e que não é sua, e nunca conduziu sua obra, essa figura do todo-poderoso-eu. Haveria sobrado alguma coisa desse quixotismo inicial? Esse romantismo, que trouxe os primeiros passos no cinema, continuava a existir em algum lugar, passado o tempo dessas figuras antigas, que coloriam os anos de aprendizado e o primeiro amor, juvenil, pela arte?
“Eu sou romântica. Sou dessa geração romântica, e continuo sendo romântica. Eu não me interesso em fazer filmes só por fazer”, diz a autora, enquanto explica sobre processo de criação: “O meu processo vem sempre do interior. Só em um filme, Chamada a Cobrar, eu parti de uma ideia externa, que me parecia interessante. No meu projeto eu começo sempre com algo que eu quero mudar, em mim ou no mundo.”
Que Horas ela Volta, filme que ficou marcado como o mais emblemático de sua carreira, é filho, também, dessa introspecção que se volta para o mundo, e para a transformação real. Em entrevistas e depoimentos, Anna nunca escondeu a inspiração pessoal do filme, cria do mesmo momento que trouxe os contos de Quando o Sangue Sobe à Cabeça. Foi na solitude da maternidade recém-começada que seu olhar voltou-se àquelas pessoas ao seu lado que representavam, ainda mais na época, uma vida guiada pelas leis implícitas da família e do patrão, que perduram desde a escravidão. Trabalho de uma cineasta já madura, vivida da impactante estreia nas telas com o tocante Durval Discos, e do sucesso de É Proibido Fumar, além do trabalho em obras como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, o filme sobre a empregada Val (Regina Casé), e a chegada a São Paulo da filha Jéssica (Camila Márdila), que concorre no vestibular com o filho dos patrões, acertou em cheio um nervo aberto do Brasil.
Foi, também, o seu primeiro filme nessa nova fase das mídias sociais, e o que encontrou nelas uma casa mais receptiva. “Eu adoro quando as pessoas transformam meu trabalho em meme”, diz, citando Que Horas ela Volta, e lembrando a cena em que Jéssica diz “não espero ser melhor que ninguém, mas também sei que eu não sou pior”. “Pra mim aquilo é um sentimento que a pessoa guardou do filme.”
O conto-título de Quando o Sangue Sobe à Cabeça, em especial, não esconde seu parentesco com Que Horas ela Volta. É, também, uma história que joga a luz sobre a empregada doméstica, escondida, usualmente, como um personagem secundário dos dramas da família abastada A conversa, assim, retorna para o livro, em que todas as histórias apresentam a marca da reflexão de Anna, e dos temas que habitavam a, então, escritora nesse exílio das telas. “Que Horas Ela Volta também é irmão desses contos. O filme vem de um romance, A Porta da Cozinha, que escrevi junto com eles. Essa era uma história maior, tanto que acabou virando seu próprio livro, e, eventualmente o filme, mas que foi escrita junto com aquelas que foram parar no livro.”, ela explica. Pontua, no entanto: “A diferença que existe em Que Horas Ela Volta é que ele trata de um outro país. No livro, O Sangue Sobe à Cabeça ainda tem um final à moda antiga, em que esse destino trágico era a única possibilidade para a empregada doméstica. O filme já é feito depois de uma história de políticas sociais que transformaram isso.”
Que essas mudanças, pelo menos parcialmente, se vejam ameaçadas, vítimas das mesmas conjuntura que anunciam esse retorno ao passado no sufocamento do cinema, revela outro aspecto desse filme, que, assim, como os contos com duas décadas de distância, tem, no presente, de acordar para uma realidade nova. “Esses dias estava lendo um artigo que analisa conjuntamente o Que Horas Ela Volta e o Parasita, e falava de como nessa distância entre os dois, nesses quatro anos entre um filme e outro, a violência explodiu. O mundo do Parasita já é diferente de quando o meu filme estreou. Que Horas ainda é um filme educado, gentil. Parasita usa a violência, que é a insistência, e o reconhecimento, que o capitalismo não faz mais sentido, nem pro humano, nem pra natureza.”
Esse era realmente o tamanho da crise, e a gravidade dos seus efeitos. “Os nossos corpos tinham se tornado uma espécie de penduricalho pro cérebro. Não sei o que vai ser do cinema depois dessa mudança tão profunda, mas se eu posso dizer alguma coisa é que sinto que isso vai passar por um redescobrimento do corpo. As pessoas vão sentir vontade de ir pra rua, e de estar na rua de novo.”. A menção ao filme vencedor do Oscar também não era por acaso. O filme sul-coreano é uma referência à cineasta brasileira, parte do que lhe alimenta, e lhe traz inspiração, hoje em dia. “Me encantam os filmes que tem verdade, e sobretudo aqueles que tem humor, e que tem ironia. Recentemente Parasita fez isso, Bacurau fez isso, e esses filmes também são filhos de um momento. Isso é o que me inspira, hoje em dia. A comédia pura não me encanta, nem me encanta aquilo que só fala sério”
Bacurau, e Parasita são dois filmes recentes que ganharam um apelo, de público e crítica, até pouco tempo atrás inimaginável. Filmes que, se não são de forma alguma alternativos, ou de baixo orçamento, quebram com uma regra estabelecida para o tipo de produção que poderia alcançar um sucesso como esse. Seu sucesso se define muito por como foram capazes de ler essa realidade, em uma transformação tão súbita, e disso criar um riso estranho, ansioso, que conquista pelo incômodo que deixa no espectador. Esses filmes que encantam pela ironia, e “por falar coisa séria dando risada”, são o fechamento de um ciclo. Os filmes, cômicos e violentos, do fim do mundo. Pelo menos do fim desse mundo, que, após as guinadas ao fascismo, após a explosão da violência, se consumiu na pandemia, e nas mudanças trazidas pela ameaça que, pela primeira vez em uma vida, desestabilizavam poderes e acossavam liberdades, dos poderosos e daqueles em seu entorno, e faziam lembrar de uma existência global. O cinema sobreviveu a tantas mortes anunciadas, como aquela que presumia o futuro de Anna e de seus colegas atrás de um balcão, que quando for possível, mais uma vez, ir ao cinema, é impossível não vislumbrar que os filmes serão nossas primeiras imagens do novo, e nossos primeiros guias, para tentar compreender o que sentimos durante o choque. O que serão os próximos filmes, nascidos depois desta experiência?
“Eu não sei! No pós-guerra surgiram filmes doces, ingênuos, como as comédias de Billy Wilder. Eu não sei o que vão ser esses próximos filmes, escritos pós-quarentena. Nem sei o que vai ser esse novo mundo, que vai surgir depois disso. Só sei que estou com um projeto, que era pra entrar em cartaz no começo de 2021, e assim que a produção puder recomeçar vou ter que revisar ele, mais uma vez. Ele ainda falava de um mundo antigo.”
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