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Passada a semana de seu aniversário de setenta anos, mesmo aqui não estando, Caio impera como patrono da dor de cotovelo no Facebook
Por Matheus Lopes Quirino
Entre a farsa e prodigiosa prosa, passando pelas páginas do Facebook, muitas vezes versos carregados por entranhas salafrárias deturpam legados literários. Mas não com Caio Fernando Abreu – passada a semana de seu aniversário de setenta anos, se aqui estivesse –, de modo curioso, pois ele impera como patrono da dor de cotovelo, sem se quer ter dito tais asneiras, tais como, para exemplificar, algo mais ou menos assim: “Para subir na vida, é necessário, primeiro, subir a escada do amor próprio”.
E mesmo estas palavras sendo maldosamente colocadas em boca do autor de mais alta estirpe, o ibope “autoajuda/depreciation” rendeu ao escritor ainda mais força e repercussão.
Caio pode se remexer, onde quer que esteja, mas, ainda hoje, sua reputação está com tudo, em grande parte, por causa destas frases prontas, das quais sua figura foi empossada como autora e “coach”, por certo. Considerado ídolo pop de uma geração, Caio Fernando, com astuciosa lábia, foi um grande visionário no campo sentimental, mesmo que autoajuda fosse último gênero do qual gostasse de meter o bedel.
Sabido já, caros leitores, que autoajuda não ajuda, pois em última consulta ao psicanalista um amigo dizia: “A Ângela só me fode, coloca o dedo na ferida. Tento bancar o intelectual com ela, em jogos mentais, mas nada… ela fica lá me olhando, por um passinho falso: ela me contorce. Volta a colocar o dedo na ferida, e eu saio do consultório boquiaberto”. Esta, sim, é a consulta promissora.
Cá pensando bem, por mais que autoajuda seja cilada das grandes, Caio meteu o dedo na ferida, muito antes do tempo começar a cicatrizar machucados históricos com a onda da politização. O autor tratou das interfaces da humanidade por vieses profundos e líricos, passando por crises e afetos, por muito salpicados em linguagem homoerótica – para aqueles tempos, um caldo de afronta aos bons costumes, antes da abertura, de fato, pela desmistificação dos tabus (sobretudo com gênero), o que ocorreu com o período da internet. Caio, Caio – o legítimo, claro –, se você tivesse Twitter hoje em dia. Os fakes não dão conta – basta checar a rede.
A dor e o amor, embora, por vezes, tão agudos, foram transcritos para a crônica. Caio Fernando soube, com finesse de poucos, elucidar o leitor por algumas epifanias, e falando nelas, via as galerias de fel que pingam nos originais das Pequenas Epifanias, destacam-se exímios relatos sobre a compreensão da arte de amar.
No livro póstumo de crônicas do escritor, diretamente dos trópicos sul-americanos, o gênero literário, pelas mãos nodosas do gaúcho, sofre mutáveis baques estilísticos, encarnando dores e angústias refinadas por miudezas ou grandiloquências – quando não, pela antítese que a condição humana dá à criatura –, ou as duas de uma só vez. Caio Fernando Abreu cravou uma crônica ao estilo “lado b”.
“Andaram falando que minhas crônicas estavam tristes demais. Aí escrevi esta, pra variar um pouco. Pois como já dizia Cecília/Mia Farrow em A Rosa púrpura do Cairo: “Encontrei o amor. Ele não é real, mas que se há de fazer? A gente não pode ter tudo na vida…”, escreveu Caio Fernando Abreu, em Quando Setembro Vier, crônica publicada no Caderno 2, no jornal O Estado de S. Paulo, em agosto de 1986.
Polemista, genioso e genial, ele fotografou com exatidão pontos, vírgulas, travessões, silêncios e vazios em diálogos com o leitor sobre solidão, amor e, por altos e baixos, impressões sociais do Baixo Augusta ao Paraíso (o de artigo definido mesmo) no auge dos anos 1970 e 1980.
Ainda que como cronista tenha obtido demasiada notoriedade, foi com a coletânea de contos Morangos Mofados (Editora Agir, 1982) que o sucesso como escritor foi iminente, sendo o livro considerado o seu Magnum opus.
Em Pequenas Epifanias, na homônima crônica, a precoce disparada explicita o estado de espírito do cronista constantemente aturdido pelos próprios sentimentos, já nos primeiros versos: “Há alguns dias, Deus […] enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, com descuido e alguma pressa, de amor”.
Tão delicado quanto profundo, no carteado das angústias, ele sempre se munia de um fabuloso jogo de referências e condecorações literárias, como na crônica Carlos chega ao céu, uma bela homenagem ao poeta maior, Carlos Drummond de Andrade.
Do itinerário crônico de Caio Fernando, por uma série de elementos referenciais, são postos diálogos entre a cultura pop, boa literatura, clássicas inspirações, notáveis em textos como O mistério do cavalo de Édipo e Para ler ao som de Vinicius de Moraes.
Indubitavelmente, a singularidade e o estilo pungem questões acerca do âmago de seus próximos ao detalhado “autorretrato” – impulsionado por paixões aterradoras, mágicas e trágicas, que Caio Fernando cultivou, além dos girassóis – vale conferir a crônica A morte dos girassóis –; um diário aberto de sua alma, por excelentes metáforas e sacadas, das ligeiras e ferinas ao etéreo.
Vale a pena ler de novo, ou mesmo pela primeira vez, pois a seleta de crônicas brinda o leitor com uma tônica noir, fugindo à regra do próprio fazer crônico, quando estas foram consumidas (pelos leitores de Caio, na época) como um dos últimos drinks amargos preparados pelo escritor, mas com uma pitada de doçura como corpo de fundo de um café preto tomado em jejum. Não é de fácil apreciação, requer sofisticado paladar.
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