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Os registros que o italiano Antonello Veneri fez de um Brasil colorido, cada vez mais só verde e amarelo...
Por Matheus Lopes Quirino
Na sexta-feira pré-carnaval, São Paulo já estava levando os últimos retoques do staff municipal para, naquela noite, dar início aos desfiles, enredos e sambas. Naquelas alturas do campeonato carnavalesco, o país, que normalmente só inicia os trabalhos depois dessa fase festiva, coloca a máscara e os costumes dignos do recesso puxado pelos foliões nas grandes avenidas até a quarta-feira de cinzas.
Da sacadinha de um dos apartamentos em cima do Riviera, templo da boemia paulistana erguido em 1949, na esquina com a rua da Consolação, o fotógrafo Antonello Veneri, de camiseta mal passada, bermudas cáqui e chinelos havaianas, teve vista privilegiada para um carnaval diferente de todos que já passou. “É a minha primeira vez aqui em São Paulo nesta época, estou completamente perdido”, disse à Frente & Versos o homem que andou do Complexo da Maré à Amazônia, da Bahia de Todos os Santos à Roma de todos os papas.
Deixemos os papas para o final, já que aqui no Brasil, diz ele, o profano e o sagrado andam de mãos dadas. Conhecedor, como poucos, dos extremos do país, este italiano parece acompanhar o ritmo de São Paulo, tornando-se ao mesmo tempo anacrônico naquele fuzuê carnavalesco. “Qual bloco é bom?”, pergunta, mostrando bloquinhos lado B na praça da República.
Veneri abriria duas exposições em São Paulo, motivo que lhe trouxe à cidade. Em nosso último encontro, ele resolvia os últimos detalhes das exposições, enquanto fumava um cigarro, porque “é trabalho que chama”, dizia empolgado com seu sotaque típico da Mooca, ao passo que, já preocupado, lia notícias da imprensa italiana. A apreensão tinha nome: Coronavírus.
Assunto onipresente em toda imprensa, a conversa sobre a peste que assola o mundo seguiu os mesmos moldes, enquanto o italiano mostrava com preocupação o grande fluxo de turistas que, outra, passeavam pela Veneza que, como no clássico de Luchino Visconti, agora está vazia, sendo desinfectada e evacuada. Ele repete gesticulando, compenetrado, com olhos assustados “Coronavírus”.
Impossível não entrar no assunto (Mooca) “É impressionante como quase todo mundo aqui em São Paulo tem um pezinho na Itália”, diz ele. Uns mais para o chinelo, outros para a bota que o mapa de seu país parece arremedar. Veneri acha estranho que uma parte da geração dos italianos de hoje, netos daqueles que se refugiaram do fascismo aqui no Brasil, tenha um pezinho no conservadorismo. “Os caras não têm ideia do que os seus antepassados viveram”, diz ele.
Agora falemos de passado. O ragazzo Antonello gostava de assistir programas documentais, pré-NatGeo, que passam na televisão. Nos anos 1980, quando morava com os pais, em Trento, o comediante Beppe Grillo, que na época apresentava uma série sobre viagens, Te lo do io, chamou sua atenção. Grillo, que hoje se dedica à política, foi a primeira ponte entre o Brasil e o italianinho. “Ele me apresentou a um Brasil diferente daquela visão turística do país”, conta Antonello. “O Beppe vinha para cá e conversava com personalidades como o Caetano Velloso, o Gilberto Gil, mas também com pessoas comuns.”
Depois de debandar da literatura, tendo se formado e lecionado por alguns anos, foi no fotojornalismo diário, em Trento, que Antonello se iniciou no ofício, na década de 1990. Quando pôs os pés no Brasil pela primeira vez, em 2007, Veneri começou por Fortaleza, fotografando o cotidiano de pescadores, ambulantes e outros profissionais que tiram sustento do mar e do turismo.
No Nordeste, região a que o italiano tão bem se aclimatou, a diversidade cultural, que muitas vezes remete à seca, ao sertão de Euclides da Cunha, já foi muito explorada por escritores, artistas plásticos e fotógrafos. Mas a Veneri não interessa esses recortes do passado. O que ele quer, explica, é retratar o sertão hoje. “Quero muito passar por essa terra castigada, mas a deste tempo em que pessoas têm um smartphone na mão, mas falta comida na mesa...”.
O sertanejo que tem WhatsApp, em matéria de novidade, pode rivalizar com o índio que anda de fones de ouvido, ou mesmo com os devotos que se encontram para uma procissão através de eventos no Facebook. Em uma das exposições que realizaria, “Di/ver/Cidade”, o espírito é justamente esse. Essa contraposição de futuro e passado, do analógico e do digital, do real, da natureza e do que o ser humano projetou, descomunalmente, contrastando e interferindo no ambiente. Como é o caso dos espigões construídos à beira- mar, em Fortaleza.
Naquela orla gentrificada, dois mundos se chocam. A série de pescadores fisga exatamente esse espírito analógico. Numa das fotos de Antonello, vê-se um cesto de peixes já com olhos turvos, sobre um fundo desfocado em que brotam empreendimentos de luxo, opulentos. O cheiro do peixe imediatamente invade os sentidos de quem olha o trabalho. E não só imagens do cotidiano dos velhos pescadores trazem esse questionamento da modernidade. Veneri fotografou periferias, ocupações e outros lugares de duras realidades.
O fotógrafo se encanta pelo Brasil que não está nos outdoors. Em Salvador, ele registrou a vida no bar de drag queens Âncora do Marujo. Considerado templo do transformismo na capital da Bahia, o Âncora, conta Veneri, é um lugar onde drags fora dos padrões tradicionais se apresentam. Em suas fotos, ele clicou noites de shows na casa. E, trabalhando com contrastes fluorescentes, confessa que enxerga uma grande beleza nos que, por aí afora, marginalizam. “São drag queens muito especiais. Quando estive lá, fizeram uma performance para discutir o racismo nas obras de Monteiro Lobato, por exemplo”.
Veneri se entrega a suas experiências. Realiza intervenções em comunidades, interage, conversa com quem lá está, para entender o que se passa, para além do que veem seus olhos estrangeiros. “É um erro o fotógrafo se apropriar e ir embora”, acredita ele. Veneri, que realizou uma série fotográfica registrando o interior das casas dos moradores da favela da Maré, no Rio, presenteou-os com as fotos, construindo, com cada morador, uma espécie de dignidade fotográfica, chancelada por uma exposição e, principalmente, por um estrangeiro, esse forasteiro que cidades turísticas como o Rio investe pesado para atrair com outdoors de belezas naturais aos points da zona Sul e seus cartões postais.
Uma espécie de cigano da fotografia, ele não tem morada oficial, embora fique boa parte do ano em Salvador. Lá, além do belo ensaio feito no Âncora, ele fotografa o dia-dia de quem resiste à desigualdade social da metrópole, do trabalhador comum, de meninos e meninas pés-descalços, jogando futebol no chão de terra batida ou correndo entre poças de vielas esguias em bairros pobres da cidade.
Naquela terra de santo, ele também vivencia o sincretismo liquefeito no ar baiano, tendo realizado um ensaio fotográfico captando as caras & bocas da Mão Stella de Oxóssi, além de ir em busca dos Orixás que vivem na Bahia hoje. Para próximas viagens, ele tem vontade de conhecer as vilas de imigrantes italianos no Sul do país e, confessa, “Vou estar conhecendo um outro país, um Brasil que não conheço”.
As Madonas
De volta ao assunto Itália, para além dos papas da Netflix do cineasta Fernando Meireles, como diria José Saramago, até mesmo um ateu confesso, em um ambiente repleto de religiosidade como Portugal, tem motivos para acreditar em algo. Em matéria de acreditar ou não em algo, Veneri não tirou da cabeça uma parte importante de sua formação católica: a imagem das Madonas – que estão presentes em muitos de seus trabalhos fotográficos. Influências, são muitas. Dos afrescos clássicos de mestres da pintura italiana, como Michelangelo, a Madonas de Caravaggio, Bellini, Rafael Sanzio, Allegri, as Madonas de Veneri são meio gauche e têm luz própria. Ele odeia flash e fotografa em cores. Quer explorar os sentidos da foto a partir das Madonas; realçar os extremos, brincar como um diabrete com o espectador. No Brasil, ele viu uma força incomum em tantas mulheres que, pobres e desabrigadas, carregam os filhos em um braço, enquanto, no outro, puxam uma trouxa de material para reciclagem, ou bordam singelos puxa-sacos plástico, desses de cozinha. Suas Madonas são terrenas e guerreiras, são pecadoras, são sagradas e profanas, são mulheres negras, morenas, mulatas, são mulheres brasileiras, periféricas, fora dos padrões usados pelas companhias de viagens. São essas tantas mulheres que chamaram a atenção de um estrangeiro que aqui não está a passeio.
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