\\ ESPECIAIS
A persistência faz o artista — diria o senso comum —, e aquela velha história dos 99% de transpiração para 1% de inspiração funcionaria com o menino da Casa Verde.
Por João Pedro Tognonato, colaboração para Frentes Versos
Nascido em 31 de agosto de 1956 no bairro da Casa Verde, Zona Norte de São Paulo, Arnaldo Angeli Filho – mais conhecido como Angeli – sabia desde cedo que se tornaria um desenhista –, mas não tinha exatamente a certeza de que tipo seria: um autor de quadros? Um grafiteiro? Um ilustrador publicitário? Por sua infância modesta o mais provável era que virasse um pintor de paredes.
Filho de imigrantes italianos – o pai era funileiro e a mãe costureira – Angeli teve o período escolar marcado pelo profundo desinteresse nas disciplinas convencionais. Foi convidado a se retirar do colégio estadual (eufemismo pedagógico para expulsão) por conta das brigas que arrumava, e passou a frequentar a repartição municipal, que segundo ele, era um refúgio de bandidos e degenerados. Ali encontraria o recôndito perfeito para exercer sua vocação: a delinquência. Passava grande parte do tempo livre em busca de fumo, chegando a trabalhar numa banca de jornal apenas para conseguir um pouco da bendita erva verde. O que era facilitado por ser vizinho de um bar frequentado por traficantes.
Mas dentro de casa, os olhares do pequeno Angeli voltavam-se para a profissão do pai e do avô; e mesmo que tivesse horror em seguir no ramo da funilaria, enxergava certos aspectos notáveis no trabalho com o ferro – principalmente nos esboços e nas peças produzidas com mais ornamentos. O avô, quando não fazia estribos de carro e charretes, construía portões no estilo Art Nouveau; sem nem saber, o velho era um grande desenhista. Lembra também de observar o pai fazer os trabalhos escolares da irmã com a tradicional “pena mosquito" – desenhando em tinta branca, numa grande cartolina preta – imagens de animais requeridos pelo professor de biologia.
Em 1968, o jornal de humor, O Pasquim foi lançado no Rio de Janeiro, e o jovem cartunista, então com 12 anos, recebeu um exemplar: ficou maravilhado logo que pôs os olhos nele. Já conhecia outras revistas do gênero, como a Cruzeiro – na qual lia os textos de Millôr Fernandes, e a Pif-Paf, sempre à vista no salão de barbearia – de onde tirava inspiração para suas criações autodidatas; estonteado com as publicações do Pasquim, cheia de desenhos e figuras num modelo bastante revolucionário para a época. Angeli passou a lê-las compulsoriamente. E sem perder tempo, começou a mandar seus desenhos rudimentares, de estilo primitivo, para a sessão de cartas ao leitor do jornal.
Como seu campo era o da arte figurada a personagem que mais lhe cativava na redação do Pasquim era a do cartunista Jaguar. Enviava-lhe também missivas confusas e desconexas, rejeitando solenemente a concordância, numa linguagem excessivamente coloquial — obviamente nunca eram respondidas. Até que um dia, pôde finalmente encontrar seu ídolo frente a frente, não deixando de perguntar: “Sr. Jaguar, você lê as correspondências que eu te mando?”. O cartunista virou-lhe os olhos tranquilamente e respondeu “Sim, eu recebo, mas não entendo nada do que está escrito. Pensei até que você fosse estrangeiro.”
De tanto mandar seus trabalhos toscos para a erudita redação do Pasquim o filho de funileiros pôde finalmente ter alguns deles analisados por Henfil. Mas bem nesse dia, ele conta, Millôr Fernandes entrou no recinto – e Millôr Fernandes, como se sabia, era “O” cara do humor.
Seu coração começou a bater num ritmo acelerado, o suor escorria seboso da testa, suas axilas encharcadas denunciavam a imensa expectativa do rapaz em saber a opinião do Cara. Na sua cabeça podia ver a cena toda: o ídolo pegaria nas mãos seus desenhos, os analisaria, abriria um sorriso contido — demonstrando de soslaio o imenso prazer em ver aquele trabalho tão bem feito — e lhe diria as palavras aconchegantes: “Muito bem, meu filho. Você tem futuro!”
Poderia aquele ser o momento da consagração de um neófito se a vida fosse igual a Hollywood, mas, a realidade mostrou-se muito mais fria e cruel. Millôr apenas olhou o material, como quem olha um panfleto de imobiliária, passando nele os olhos e o pondo rapidamente de lado.
A persistência faz o artista — diria o senso comum —, e aquela velha história dos 99% de transpiração para 1% de inspiração funcionaria com o menino da Casa Verde. Pouco a pouco, foi entendendo melhor o métier da ilustração, confeccionando quadrinhos mais densos, complexos, a ponto de ter uma página inteira publicada no irreverente jornal carioca: “Aquilo foi a Glória,” diria em entrevista, décadas depois.
Nos anos 80, Angeli, já tendo construído certa notoriedade, teve a oportunidade de se embrenhar no campo da editorial reunindo-se com outros cartunistas de sua geração, como Glauco, Laerte, Luiz Gê, para fundar a antológica revista, Chiclete com Banana onde além de produzir trabalhos autorais, publicavam cartoons norte-americanos, como os de Robert Crumb e seu célebre Fritz, the Cat; Wolinksi (1934) e Jean Marc Raiser (1941-1983); à época, afirmou com muito prazer, que ali aprendera a fazer o trabalho de diagramação.
Contudo, seus dotes editoriais viriam mais como necessidade do que por vontade em si. O design de algumas revistas, na sua opinião, mais lhe pareciam enciclopédias do que propriamente um produto jornalístico. Preocupou-se, assim, em desenvolver um rearranjo preciso, unindo matérias com fotos, textos e tudo mais que poderia caber naquilo que chamou de: “um processo de engordamento”. A revista contava inclusive com matérias pitorescas de utilidade pública financiadas pela própria editoria, foi o caso de “O banheiro mais podre de São Paulo,” onde um repórter, pago para frequentar baladas, postos de gasolina, repartições pública, padarias, lanchonetes e outros logradouros, saia à procura de um lavabo emporcalhado que merecesse o título honorífico.
Às vésperas da Chiclete com Banana completar dois anos em circulação, Angeli pensou numa tirinha que celebrasse a importante data – depois de ver o cartaz do filme mexicano ¡três amigos!, pensou que ele, Glauco e Laerte ficariam bem encarnando a versão tupiniquim dos atores canastrões, Lucky, Dust e Ned. Assim, o que era para ser apenas uma brincadeira comemorativa transformou-se num sucesso instantâneo. O quadrinho, produzido coletivamente pelas três das mentes mais criativas do ramo popularizou-se de tal forma que não só o Brasil inteiro passou a conhecê-los, como em outros países da América Latina e da Europa: Los Três Amigos formariam o inconsciente coletivo de uma geração.
Angeli percebeu que a tirinha brasileira vinha adquirindo uma nova faceta. Não por que houvesse um projeto pré-definido para essa mudança, projetando no ofício ares de vanguarda, mas porque caminhava para outras referências, fora do circuito comercial. Notou que temas espinhudos da época como drogas e sexo sempre estavam presentes nas publicações undergound dos norte-americanos, nas quais hábitos e comportamento eram tratados de forma tão singular, a ponto de entender que aquela seria uma boa forma para falar de política sem ser explicitamente político.
“É gozado... você desenha hippies, você desenha beats, new waves, tudo mais. Parece que você está sempre lá dentro, implodindo essas coisas” comentou Ruy Castro, historiador e escritor brasileiro.
Graças a esse comentário – que o artista comemorou efusivamente – percebeu que sua abordagem singular para retratar os movimentos de contracultura passava longe da visão mistificadora que os popularizaria ao redor do mundo. Desenhava essas figuras mostrando seu lado decadente sem se preocupar em endeusá-los, bajulá-los ou dar-lhes qualquer faceta supra-humana.
Por outro lado, Angeli já trazia outras referências às suas tirinhas. A música do anos 60 e 70 também era muito presente em seus trabalhos – tanto nas imagens, quanto nos bastidores – e, desenhar determinado personagem, envolvia escolher a trilha certa. Por exemplo: Bibelô, um malandro, mulherengo, cachaceiro, ganhou forma sob o swing de samba; Bob Cuspe, o punk que desprezava o sistema e todos aqueles que levavam uma vida confortável, surgia ao som de The Clash, e Rê Bordosa, personagem insipirada em Angela Rorô, foi criada seguindo estes mesmo princípios.
O Jazz foi outra influência notável para a concepção de seus personagens. Músicos como Pop Foster, Billy Porg “Mr. Celato” Brown, Willian Claxton, Earl “Father” Hines entre outros aparecem com frequência em publicações do artista. Era como se aquelas figuras, com seus ternos escuros, óculos Ray Ban, cigarrinhos na ponta dos lábios e bigodes finos, simbioticamente ligados a seus instrumentos: saxofones, pianos, trompetes, Doublebass e bateria, lhe trouxessem uma estética tão bem delimitada que era impossível ignorar.
Na virada do milênio, Angeli já era um nome bastante respeitado, além de seu lugar cativo na Folha de S.Paulo e na revista Chiclete com Banana, é certo que deixou sua marca na história do Cartoon e da cultura Brasileira. Publicou inúmeros livros, a maioria de quadrinhos, onde seus personagens, Walter Ego, Rigapov, Rhalah Rikota, Bibelô, Meiaoito, Ritchi Pareide, Aderbal, Os Skrotinhos e muitos outros se tornariam conhecidos e referendados em todo território nacional
Foi então que bateu a tal da crise. Passou a incomodar-se com o formato da tira e não se sentia impelido a criar novos personagens: as ideias já não brotavam tão facilmente. A solução encontrada veio por acaso. Observando os rascunhos que fazia enquanto falava ao telefone ou almoçava, notou que ali havia algo de inédito a ser apresentado – talvez uma espontaneidade, algo de primitivo e que até o momento não conseguira expressar. Pegou esses “Rabiscos de canto de mesa” e começou a guardá-los; colocou-os no papel com afinco, revitalizando seu traço, aprimorando o estilo – fazendo aquilo que Millôr Fernandes caracterizava como “apenas bons desenhos...” e só assim, voltou a sentir prazer no trabalho.
Com muito bom humor o cartunista revela em entrevistas que, atualmente, se encontra nessa fase. Assume que é importante envelhecer com dignidade e demonstra alegria ao ver que uma nova geração está surgindo. Quando perguntado qual seu maior medo, ele aponta – em meio a baforadas de cigarro – dois principais: o primeiro é perder a mão do próprio trabalho e o segundo, esse talvez com ares premonitórios, o temor de que o Brasil venha a se tornar uma grande piada.
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(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da FV)
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