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O que eu acredito, e nesse sentido que eu talvez entendo que para o autor aquilo que é escrito tem uma finalidade além da obra em si, é que a escrita é um ato de entrega.
Por Bruno Pernambuco
[As edições de 2020 da Balada Literária, tradicional evento que ocupa espaços sociais e culturais de São Paulo com shows, debates, e acontecimentos que misturam a confraternização ao fazer literário, acontecem de forma virtual. Entre os dias 3 e 7 de Setembro, acontece, no site oficial da Balada, a programação da edição de São Paulo (simultaneamente à de Salvador), que homenageia a poeta Geni Guimarães. Confira aqui nossa impressão geral do evento.]
A cor da ternura é muito precisa, exata, e simultaneamente é tal como uma jóia escura cujo brilho se constituí a partir de suas mil refratações. É uma força que emana de uma certeza, é um diálogo e uma permanente recriação. É um vínculo tão íntimo, tão certo e emocionante, que constantemente desmonta e refaz a própria individualidade, e retoma com toda a chama as relações vivas sob os nomes silenciados. O trabalho de Geni Guimarães, paulista, mãe e avó, referência da literatura negra contemporânea no Brasil, e, sobretudo, escritora que nunca deixa sua atividade é o de recuperar detalhes, hesitações, silêncios, e aqueles menores gestos em que cada uma dessas relações é recuperada e se faz de forma única.
“É uma felicidade imensa, e um orgulho, ser comemorada na Balada”, diz Geni Guimarães. A celebração de sua obra- que se inicia com a publicação de Terceiro FIlho, atinge uma consagração crítica com o lançamento de A Cor da Ternura, premiado com o Jabuti e segue até os dias de hoje, mais recentemente com a publicação de O Pênalti, que se acrescenta a toda uma coleção infantil elaborada pela autora ao longo dos anos- traz à tona muitas questões, inclusive a respeito do reconhecimento histórico desses livros, e mesmo das formas e dos espaços em que essa celebração é conduzida, mas igualmente traz a quentura e alegria da festa, de uma presença ativa e de uma recepção calorosa e de braços abertos desses livros tão tenros e precisos em suas construções mais minuciosas do cotidiano. “Essa celebração traz uma abertura para a minha obra, é como se um leque das minhas experiências se ampliasse.”, comemora Geni, que diz, e mostra, aproveitar inteiramente essa novidade pulsante, e abertura das conversas que surgem a partir desse convite.
Toda essa agitação externa também traz o movimento de um olhar para dentro, e para a reflexão a respeito do próprio processo. “Hoje eu não tenho algo, em definitivo, que eu digo que ‘sinto vontade de escrever’. O que eu mais procuro, embora não me limite a isso, é a denunciar o racismo, e alertar os povos oprimidos para essa prática- que era totalmente camuflado, e hoje já não é tanto. Pretendo continuar trabalhando nesse sentido.” O trabalho de uma denúncia histórica, misturada sempre ao olhar detalhado e carinhoso da individualidade que é atravessada por essa vivência dolorida e injusta, continua, e acompanha mesmo mutações sociais, e transformações que já se colocaram em prática nesse tempo - tão curto, no esquema geral das coisas, da história racista de um país - desde a primeira publicação.
Essas transformações que atravessaram o mundo literário (ante com ares de clube fechado) e a cultura em geral de um país, e que também se aprofundaram com a chegada de novos canais de fala, distintos repartidos, menos unitários e controláveis, também afetaram profundamente o trabalho de escritora, em suas diferentes etapas, e mesmo o lugar do qual a autora enxerga sua própria obra. “Eu me sinto em um diálogo com novos autores. Até pelas comemorações da Balada, tenho conhecido muito outros escritores, e tenho tido esse diálogo. Que bom que pode existir essa troca de figurinhas, que enriquece a literatura de quem está nessa conversa!”
“Terceiro Filho, meu primeiro livro, ainda foi uma publicação independente. Mesmo meus livros infantis, depois disso, ainda tiveram um público pequeno. Hoje os meios de comunicação são muito mais ampliados que no passado. A partir da publicação de A Cor da Ternura, a recepção da minha obra mudou, tanto que eu fui convidada para dar palestras na Alemanha, na Suíça, em diversos lugares. Com tudo que passei acho que eu posso, com humildade, dizer que estou bem na literatura atual!”
A escrita engajada, e o trabalho de elaboração desse tema junto com a introspecção para a própria experiência pessoal, nesse esforço necessário de adaptação constante a realidades externa e interna que estão em constante transformação, chama uma inovação constante, e o trabalho de novas experimentações. “Eu tento escrever poemas sempre experimentando, partindo de vertentes múltiplas, e então cada poema tem um leitor, tem o seu público! Assim eu acredito em um sentido coletivo da poesia, através do compartilhamento dessas experiências.” E o recolhimento forçado, imposto pela eclosão de uma pandemia, também pode recolocar de formas muito particulares esse olhar “O isolamento, da forma como acontece agora, por conta da pandemia, pode até aproximar a relação do leitor com uma obra. Esse tempo que agora está dado pode servir para que cada um reveja as suas literaturas”.
O processo de composição da história - ou de um poema - vem, diz a autora, da presença imediata da vida, e é essa matéria rica da realidade que mexe, que anima, e que chama a criação poética para apresentar aquela inspiração desvelada no acontecimento. Esse trabalho simples e enraizado no chão e a obra poética extremamente elaborada e refinada; é o nascimento da linguagem onde se encaixam todos os efeitos pensados que ela pode trazer; é a permanência histórica de toda uma memória que está constantemente viva e que se atualiza na precisão de cada momento; é, através de todas as mediações, de texto, de autora e de outros autores, que a literatura pode trazer, o motivo para comemorar. “A história tem que ter um propósito, acredito que sempre se parta de algo que se quer dizer. Como tudo na vida, o processo de uma narrativa, ou de um poema, tem um começo, um meio e um fim.
Mas eu não acredito em um momento definido, que seja necessariamente uma coisa única que traz a inspiração. Às vezes eu estou na cozinha, lidando com as minhas panelas, e de repente surge pra mim um pequeno texto, um começo de alguma coisa. Nessa hora eu anoto, e deixo ele lá, marinando. Quando eu acabo de cozinhar a batata, vou lá e termino aquilo! Mas o que me move pra escrever é a visão social, e as pessoas que estão dentro dessa vida social. Eu vivo numa vila muito simples, ao lado de pessoas que tem um nível cultural muito menor do que o meu. E eles me inspiram muito, porque eu gosto do pulo, do natural, daquilo que é espontâneo.
O que eu acredito, e nesse sentido que eu talvez entendo que para o autor aquilo que é escrito tem uma finalidade além da obra em si, é que a escrita é um ato de entrega. Isso é algo que está dentro e fora, ao mesmo tempo, da obra. Eu tenho contos que eu escrevi que não entraram em nenhum livro, que eu escrevi só pelo fechamento dessa obra em si mesma. Ao mesmo tempo, depois que publiquei individualmente algumas dessas histórias, elas me ensinaram, mais uma vez, que a literatura voa, que a narrativa voa - e que é esse espaço particular em que essa entrega se torna realmente uma conversa.”
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