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Durante a pandemia, Helô D'Angelo considera que onipresença da crise do Coronavírus está impulsionando seu trabalho
Por Bruno Pernambuco
A tela está acesa, e se torna a arena para a publicação. O momento de dar a cara ao mundo, entre a saturação de imagens luminosas. Mais um dia, mais uma vez o perfil foi atualizado com o traço característico, com as cores amenas e convidativas, com o retrato ao final da sequência de fotos reiterando os canais de apoio- e, claro com a inversão de expectativas, com a observação sagaz a respeito do cotidiano, e com a reflexão que afeta profundamente.
Foi não só com o humor contagiante dos seus quadrinhos, mas também com sua precisão ao traduzir de maneira simples, em situações e personagens corriqueiras, referências feministas, antirracistas e dos direitos humanos, que Helô D’Angelo conquistou um público cativo, chegando a mais de 120.000 seguidores no Instagram. As vantagens, e também as contradições e idiossincrasias de uma plataforma que dissolve aquele distanciamento com o leitor sobre o qual se pautava tradicionalmente a linguagem dos quadrinhos, pesam, diz a artista, sobre o seu trabalho com uma leveza delicada, com as certezas de uma linguagem que impõe formas muito precisas sobre o que é produzido e, simultaneamente, abre um relacionamento único com o público.
“Nos quadrinhos, você, até muito pouco tempo, 20, 30 anos atrás, dependia exclusivamente das editoras ou dos jornais para fazer o seu nome. Hoje em dia você pode publicar esse trabalho sem esse mediador.”, disse a quadrinista a Frentes Versos. E as experiências que surgem nesse espaço tão unicamente democrático, nessa abertura tão pública e simultaneamente tão artificial, com uma persona muito bem elaborada para mostrar ao mundo, não seguem um script esperado. “Comecei a página depois de um período de branco, após a entrega do meu TCC na faculdade de jornalismo. Depois de algum tempo nesses caminhos do jornalismo escrito, trabalhando em alguns sites, fiz um combinado comigo mesma, de desenhar pelo menos uma vez ao dia e publicar os resultados nesse perfil, que criei exclusivamente para os desenhos.". E ela completa "O crescimento da página foi muito natural, conforme mais pessoas iam se familiarizando com as minhas tirinhas. Eu nunca tive um planejamento tão definido, para chegar em uma meta de seguidores, por exemplo.”
Nem tudo, ao mesmo tempo é fácil dentro desse meio, tão exagerado, apressado, e regulado por uma regra disforme. “O Instagram tem um algoritmo muito cruel. Se você não posta todos os dias, ou pelo menos com alguma frequência, você não é visto pelas pessoas, a própria plataforma te deixa pra trás no feed. Isso afeta o meu trabalho. Existe uma ansiedade muito grande de ter que estar sempre no topo desse algoritmo. Mas hoje ao menos eu tenho noção que isso não define a qualidade do meu trabalho. Tenho algumas das minhas tiras favoritas que, por uma questão do algoritmo, não alcançaram tantos likes, e, da mesma forma, desenhos que eu achava super bobos, que pra mim eram pouco mais que um exercício, que conseguiram dez, quinze mil likes.”
A exposição desse trabalho, no veículo da rede, se torna também quase que uma atividade íntima, pela proximidade tão grande com o público, onipresente dentro do microcosmo da rede e de suas interações. “Eu sinto que esse contato com o público, esse contato com as pessoas me dá força, no quanto eu recebo de apoio, de mensagens dizendo que gostam do meu trabalho, e também do quanto eu posso apoiar pessoas que querem partir para uma carreira de artista.”
Essa rede de apoio, e essa abertura, trazem consigo, também, outras questões. “Como em tudo, existe um outro lado também, o do hate! Essa abertura também encoraja pessoas a mandar xingamentos, ameaças- muitas vezes por discordância política, mas às vezes só porque a pessoa precisa de atenção mesmo- e todo esse tipo de coisa que está aberta nesse canal de uma forma que não está em outros meios. Mas apesar de tudo, eu acho que essa proximidade é boa, sim. Eu tento não prestar muita atenção no hate, e escutar as pessoas que mandam carinho, ou que vem tirar dúvidas e conversar sobre questões que eu abordo nas minhas tirinhas.”
Isolamento
O trabalho, assim como a intimidade, ganhou um novo contexto durante o tempo de pandemia, durante o convite forçado ao isolamento e à introspecção, e, simultaneamente, a onipresença da crise, atravessando as relações e desfazendo aquelas unidades sociais que pareciam seguras. “Eu gosto muito de estar em casa, me considero uma pessoa muito caseira, mas essa situação de ser forçada a ficar em casa, de não poder sequer sair para um café, ou para caminhar pela cidade- ou de ver gente através da janela do ônibus, me deixa mal. A série que estou produzindo agora para a minha página (Isolamento), inclusive, por conta de tudo isso, é inspirada nos meus vizinhos- eu busquei, literal e metaforicamente, uma janela. Esse trabalho artístico é uma válvula de escape para mim. Eu sou muito ansiosa, e tenho uma ansiedade muito paranoica, penso sempre no que pode dar errado, e tenho muito medo e preocupação com essa situação desencadeada pela pandemia. Eu tenho trabalhado muito, e nesse trabalho eu tenho a sensação de estar colocando meu sentimento no desenho. Isso me tranquiliza muito. Eu tenho produzido muito, já completei 40 tiras da série do Isolamento, e tenho mais quarenta roteirizadas! Logo, pretendo produzir um livro com elas."
Preocupações
"Eu tento, quanto possível, não me preocupar muito, já que não dá pra saber de verdade quanto essa situação ainda vai durar. Tento manter uma rotina, e, principalmente, manter a minha criatividade, que é o mais valioso pra mim. Ao mesmo tempo, sinto que eu suspendi aquilo que não me ajuda, e não quis focar minha energia naquilo que não faz parte dessa dessa saída criativa, dessa defesa de usar a criatividade como forma de pôr pra fora os meus sentimentos. Eu sinto que a minha energia varia bastante, em alguns dias ela está mais presente, em outros menos- e quando eu estou mais pra baixo é justamente o momento em que eu quero registrar tudo, em que eu sinto mais forte a vontade de exprimir essas coisas! Além disso, o que tem me ajudado muito é a terapia, agora feita à distância, uma vez por semana! Ainda existe muito essa ideia de que ‘o artista deve ser sofrido, e que pra fazer boa arte ele tem que ser maluco, e ser melancólico’- e não é nada disso! Eu sinto que só consigo fazer boa arte justamente por cuidar da minha saúde mental. Se não fosse pela minha terapeuta, nossa, nem sei se eu estaria aqui falando!”. É nessa certeza, dos cuidados da alma, e nesse seu ritmo, mais paciente, e que melhor e mais sinceramente abraça as oscilações naturais, que ocorre esse jogo das histórias pessoais, das reflexões, dos pensamentos- do que vale e do que não vale ser registrado.".
Um marco
"Um momento que marcou o meu trabalho foi quando entreguei meu TCC na faculdade de jornalismo- feito todo em quadrinhos, e onde eu usei essa linguagem para elaborar uma reportagem, fazendo perfis de mulheres- de contextos sociais econômicos e temporais muito distintos- que fizeram aborto no Brasil.” O respeito com a força que tem essas histórias e com a delicadeza que exige trata-las- em qualquer momento, e sobretudo quando se busca uma linguagem que acompanha muito proximamente a intimidade desses relatos, para Helô surge como uma possibilidade muito natural dentro da forma dos quadrinhos. “Eu quero elevar meus quadrinhos a esse nível, em que eles possam abordar qualquer assunto”. O objetivo é um resultado de referências e de reflexões que vem desde cedo. “Acho que o momento em que eu comecei a encarar os quadrinhos como algo mais consistente, com mais possibilidades, foi a partir do colegial. Em uma aula de literatura, Retalhos, do Craig Thompson, fazia parte das leituras obrigatórias. É uma obra tão profunda, autobiográfica, e que fala de trauma, e aborda todos esses assuntos com uma leveza… Na mesma época, conheci Persépolis, da Marjane Satrapi, através do meu professor de desenho, que era quadrinista. Esse detalhamento da Revolução Islâmica me deixou maravilhada, também, e me fez perceber como o quadrinho é uma linguagem que pode ser usada para abordar qualquer coisa.".
As referências
"Fui acumulando referências ao longo dos anos, como a Alison Bechdel, que tem um trabalho autobiográfico, que usa um embasamento muito grande da psicanálise e também de outras referências literárias, naquilo que é uma investigação poética de si mesma, e com um desenho maravilhoso… Além disso, as reportagens do Joe Sacco, que descobri já na faculdade, foram muito marcantes, inclusive em me permitir ver que era possível fazer jornalismo com quadrinhos. Também, no Brasil o Marcelo D’Salete me marcou muito por esse questionamento de uma história hegemônica, e pelo rigor da pesquisa que ele empreende, tanto visual quanto da biografia de personalidades históricas. As minhas maiores referências não são só de estilo, são desses artistas que usam os quadrinhos como uma mídia múltipla, que serve a muitas possibilidades.” São essas novas formas de expressão, essas traduções daquilo que- na menor escala, da intimidade mais sutil e dos desacertos da memória, ou na maior, daqueles acontecimentos jornalísticos que as palavras, na grande maioria dos casos, já travavam uma luta duríssima para descrever- parecia inalcançável ao “bobo, lúdico e infantil” estilo dos quadrinhos que marcaram a relação de uma artista com o seu trabalho, que ficaram marcadas como inspiração, naquele pequeno espaço da memória que o coração tem a capacidade de saber vivamente, e são elas que estão sempre, a se movimentar junto com as ideias novas, que não param de chegar. “Eu tento explorar outras linguagens, além do Instagram, em novas ideias que eu desenvolvo. Agora, tenho um diário a partir de uma viagem que fiz para o Atacama, junto com a minha irmã, além de um projeto de ficção, sobre saúde mental e sobre a experiência de conviver com seus demônios pessoais. Ver, também, como Dora e a Gata foi adaptado para uma série me fez ter outra visão sobre a forma que estruturo meus quadrinhos.
Boas influências
Essa articulação das linguagens, hoje, acontece a todo tempo, e tem muita gente, inclusive amigos meus, explorando esse caminho. O Pablito Aguiar, por exemplo, trabalha com uma entrevista semanal feita dessa forma! A Carol Ito, além de trabalhar com coberturas de eventos feitas em forma de quadrinho, publica reportagens- como no relato da visita dela a um presídio para conversar com homens condenados por violência contra a mulher, que estavam em um processo de falar sobre os seus sentimentos, rever essa misoginia e essas formas tão violentas de agir. Também me marcou a reportagem do Alexandre de Maio e da Andrea Dip, sobre prostituição infantil, em Fortaleza, durante a copa de 2014. Os quadrinhos são, afinal, uma mídia que você pode usar para qualquer coisa!” E essa mídia, afinal, não cansa de se renovar- não só naqueles seus meios tradicionais, mas nesse trabalho que tão intimamente aproxima artista e público, que permite essa mútua alimentação, e que resgata, com todas as singularidades da nossa época, o quadrinho como esse encontro diário.
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