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Autora recebe homenagens e tem reedições programadas no ano em que completaria 90 anos
Por Giovana Proença e Bruno Pernambuco
Do contraste entre a postura introspectiva da jovem loura ao sorriso travesso da madura Hilda Hilst haveria um hiato na vida da autora: “Madureza? Velhice!”, diria para a amiga Lygia Fagundes Telles, definindo sem pretensão algum o próprio desenvolvimento da literatura de Hilda Hilst, construída durante meio século.
Depois de ser autora homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2018, o marco dos 90 anos de um dos mais provocantes nomes da literatura nacional trouxe uma série de programações, dentre as quais recentemente realizou-se no Museu da Imagem e do Som (MIS) a exposição Revelando Hilda Hilst e a reedição pela Companhia das Letras de um de seus mais célebres livros, A Obscena Senhora D.
Com reedições voltando à praça desde que a autora paulista foi destaque na FLIP, o reconhecimento de sua produção – que Hilst almejou tão fortemente em vida – vem como alento para que o leitor entenda as escolhas da autora em suas fases na vida literária, com destaque para sua prosa classificada como “pornografia cult”, que a deixaria mais conhecida.
Diferentemente do numeroso time de notáveis nomes da literatura que tem como lacuna a falta de uma biografia publicada, o misticismo da obra hilstiana, que mesclou-se à imagem da escritora reclusa e outsider, vivendo em seus próprios devaneios e impactando no reconhecimento tardio de sua atuação, principalmente pela visão externa, foi revelado no livro Eu e Não Outra- A Vida e Obra de Hilda Hilst, resultado do trabalho das pesquisadoras Laura Folgueira e Luisa Destri.
O nascimento em Jaú, cidade do estado de São Paulo, no efervescente 1930, ano de revoltas e revoluções, é um prenúncio do que representaria a visão sobre a obra da escritora nos âmbitos literários, tratando-se de uma mulher que procurou respostas em sinais ocultos e deixou extensa produção enevoada de sutis vidências.
Não por coincidência, sua primeira publicação carrega o título Presságios, aos 20 anos, na qual surpreende pelo alto teor reflexivo, tendo como temática elementos do viver e da essência “Que amanhã Cristina vai morrer porque ama a vida”, “Eu amando todos que sofrem/ Eu... essência”.
Revela-se em sua estreia a ardente presença do amor que atravessaria todo o percurso da poética hilstiana em suas facetas e contradições. O livro foi bem aceito nos círculos literários da época, recebendo aclamação de Cecília Meireles, que considerou promissora a voz da jovem poeta. “Não sabem que o amor é amor e a natureza é um mito”, escreveu ela.
As heranças familiares marcaram a trajetória da debutante poetisa: fruto do segundo casamento da mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, que levava um estilo de vida emancipado para época, e tendo como figura paterna o fazendeiro, poeta e jornalista, Apolônio de Almeida Prado Hilst, essencialmente ligado à literatura, sendo ele apontado pela filha como a razão de ter sido escritora, acompanhando o anseio por visibilidade e reconhecimento, uma vez que Hilda esperava uma validação de seu progenitor.
Os pais de Hilst separaram-se quando ela ainda era criança, decorrer de sua vida, a escritora descrevia a relação dos dois como intensa, marcada de briga e paixão. Em 1935, Apolônio foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide, doença que causou surtos que deixariam lembranças na jovem Hilda Hilst, retornando como temática recorrente em sua literatura a desrazão e a loucura, essencialmente em figuras paternas.
Ainda que, por conselho da mãe, tenha graduado-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, não exerceu a profissão, renunciando-a pela vocação literária, cravando suas duplas iniciais na lista de escritores advindos do Largo São Francisco, entre eles Lygia Fagundes Telles, com quem compartilhou além da amizade, o título de voz da literatura contemporânea e a habilidade em esmiuçar os ínfimos sentidos a partir do estilo concreto.
O laço firmado na juventude e ainda nos primeiros anos de Hilda como escritora - enquanto Lygia já gozava de certo reconhecimento como contista – é registrado por inúmeras fotografias, com ambas sorridentes ao lado uma da outra, o que duraria a vida toda de Hilst.
Trafegando entre a elite paulistana em um estilo de vida cosmopolita regado a viagens internacionais, roupas chiques e jantares suntuosos, a escritora estreante gozava de certa independência e autonomia, em meio à boemia majoritariamente masculina de sua juventude.
O estilo libertino conjugado à beleza estonteante levariam a uma coleção de amantes e casos tórridos, que deixava escandalizada a alta sociedade, entre eles o poeta Vinícius de Moraes, a quem dedicou um poema do livro Balada do Festival com o verso “Porque fui mais amante do que amiga.”. Na Europa, aos 27 anos, namorou um dos maiores artistas do século passado, o ator americano Dean Martin e tenta até mesmo uma investida em Marlon Brando.
“Já não sei mais o amore e também não sei mais nada. Amei os homens do dia suaves e decentes esportistas. Amei os homens da noite poetas melancólicos, tomistas, críticos de arte e os nada. (...)” (Balada do Festival II)
Em 1963, conhece o escultor Dante Casarini, aquele que seria seu marido e companheiro na Casa do Sol por dezessete anos, compartilhando o espaço de criação artística e a vida comum. Eles teriam trocado telefones por atitude da poeta, que se interessou por Dante ao vê-lo numa loja de calçados na rua Augusta, casando-se com ele dois anos depois, em 1965.
A literatura de Hilda Hilst, essencialmente lírica, delineava-se após seus três primeiros livros: Presságios, Balada do Festival e Balada de Elvira; dedicados respectivamente a sua mãe, ao seu pai e à amiga Lygia Fagundes Telles.
Entre os traços marcantes de sua fase inicial destacava-se a predileção pela balada na disposição formal dos versos. Os temas hilstianos, por excelência, como o amor e a morte também começam a encontrar forma na lamentação de um eu-lírico acometido pela solidão e pelo anseio, deixando resíduos da relação entre presença/ausência.
“Ah, ternura dos dias que prometiam alguma cousa. Ah, noites que esperavam vida. (...)” (Presságio XVIII)
Em 1965, com um número considerável de publicações poéticas, Hilda Hilst mudou-se para o lugar que a ascenderia à posição de uma quase lenda, tornando-se um de seus principais símbolos na época e ainda bem marcado nos dias de hoje: A Casa do Sol.
A escritora construiu sua residência nas proximidades de uma figueira, no terreno de sua mãe em Campinas, vivendo envolta de um notável número de árvores e vegetações, em sua nova casa, com traços de monastério, cercada por janelas de madeira e arcos.
A decisão de Hilst abandonar a intensa vida social na metrópole em ascensão e recolher-se na Casa do Sol teria vindo da leitura do escritor grego Níkos Kazantzákis, com a finalidade de dedicar-se exclusivamente à literatura, sem distrações mundanas.
Entretanto, a mudança de Hilda colaborou para reforçar a visão do escritor como eremita e isolado, absorta em seus próprios pensamentos; ótica que a estigmatizou e colaborou com a pouca visibilidade e difusão de sua obra. Ainda que a poética de Hilst exalte os versos como expressão dos anseios e busca dos sentidos, quando questionada sobre como é ser poeta no Brasil, não hesitou em responder: “Uma merda!”.
É um equívoco analisar a obra de Hilst como idealizações amorosas e devaneios de uma dona de casa e senhora da década de 1970. Em uma época de forte repressão nos âmbitos políticos e sociais no país, que refletiam na delimitação do papel da mulher, a autora foi capaz de antecipar a libertação que viria na década seguinte.
Além de dividir o ambiente imaginativo da Casa do Sol com o marido escultor e as dezenas de cachorros que teve nos 40 anos que morou na residência, localizada no Parque Xangrilá, Hilst também recebeu ilustres hóspedes, amigos e interessados no espaço criativo e mítico, entre eles o escritor Caio Fernando de Abreu, que chegou a refugiar-se no porão de Hilda nos sombrios anos da ditadura e chamava a amiga carinhosamente de Unicórnia.
A vida bucólica que a Casa do Sol proporcionou a Hilst colaborou com sua intensa produção poética, que exaltou, mais do que nunca o tom do sagrado-profano, sendo a escritora uma conhecedora profunda de elementos religiosos devido a seus primeiros anos de formação em colégios católicos. Outros dois grandes temas de sua obra, erotismo amoroso e a morte, adquiriam diferentes caminhos nos próximos anos após a abertura de Hilda para outros gêneros literários.
“(...) acredito que só em situações extremas a poesia pode eclodir. Só em situações extremas é que interrogamos esse grande obscuro que é Deus com voracidade, desespero e poesia” (Introdução de As Aves da Noite).
(G.P)
A autora em cena
É, por diferentes motivos, muito delicado, além de muito interessante, falar de uma Hilda Hilst dramaturga. Em parte, isso se dá pelo quanto seu legado, popularmente, cristalizou-se numa figura da “poeta, poeta”, aquela que, através da linguagem poética elevada, trabalha os extremos do sagrado e do pornográfico – predisposição que, às vezes, pode engessar leituras suas. Outra dificuldade, no entanto, é também, ao mesmo tempo, uma das marcas mais interessantes desses textos. Numa obra de cruel liberdade, que atravessava sem pudor as definições do gênero textual, como é a de Hilda, o seu grande período de produção dramatúrgica, no final dos anos 1960, se mostra um laboratório privilegiado para essa experimento de redesenho das fronteiras estabelecidas, e sua análise desemboca no encontro com uma vanguarda artística, distante dos parâmetros do teatro burguês.
Hilda foi sempre uma tradutora de opostos – marca que está presente em toda a sua obra – e talvez em nenhuma seção de sua antologia isso se apresente mais claramente que no quinteto de peças publicado entre 1967 e 1969. Essa produção é muito colorida pelos mesmos temas que habitam já na fase inicial da poesia da autora. A exploração do sagrado, do elevado metafísico e da natureza do amor perpassam também esses textos dramáticos, mas, na tradução desses ideais para a pobreza do palco – inescapavelmente externo, limitado pelo tempo e pelo espaço – Hilda exerce uma reviravolta moderna e uma deliciosa ironia. Essas inspirações, que encontram eco na tradição da poesia lírica, e foram assumidamente pela autora alimentadas por leituras como as de John Donne e de autores do trovadorismo português, são trazidas para o teatro sob uma forma essencialmente moderna, num rompimento com a lógica clássica da ação dramática.
Os personagens desse conjunto funcionam, via de regra, como figuras universais, representações de grandes ideias ou sentimentos, e estão geralmente envoltos por uma cenografia mínima, que coloca no diálogo entre eles a centralidade da ação dramática. Esse é um dos momentos em que, deliberadamente ou não, Hilda mais se aproxima de Beckett – essa é uma comparação bastante feita durante sua vida, que, ao que parece, não lhe agradava especialmente, e que foi dito por Caio Fernando Abreu, numa carta à amiga em 1969, como insuficiente. Importante é notar como essa criação é multifacetada. Há parte desse processo que trata de uma “superação” da forma teatral, como modo de um reencontro com a poesia, e como maneira possível de encontrar aquilo que, em Hilda, ainda busca tradução em sua obra inicial, e que será retomado na forma versificada com Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, primeiro livro nascido após essas experimentações. (é esse movimento que Edson Costa Duarte lê ao dizer que nesse momento da produção de Hilda, “o dramático migra para a poesia, esta para o drama, este para a prosa”). Essa busca poética é que aparenta ser o motor para a invenção linguística, e assim a transformação vanguardista e a minúcia da lírica, como é natural na obra hilstiana, caminham de mãos dadas.
É interessante, também, pensar a fase final da obra de Hilda, com a publicação da tetralogia pornográfica, sob a luz dessa produção dramática. Por um lado, textos como O Caderno Rosa de Lori Lamby ou Cartas de um Sedutor, celebrados como uma mútua contaminação entre poesia e prosa, são, também, de uma dramaticidade rara dentro da obra de Hilda, se prestando à encenação de uma forma diferente, por conta da centralidade do personagem, do monólogo e da autorreflexão. Por outro, é importante olhar para a forma como o erotismo se colocava já na produção da autora nos anos 1960. O desejo está presente nessas obras de forma subsumida, sob a repressão familiar, ou existente na experiência de outros extremos, como a loucura dos prisioneiros na cela de Auschwitz ou a experiência da devoção fervorosa ao sagrado (que presume a repressão desse mesmo desejo). Marca da memorável, embora curta, escrita teatral de Hilda Hilst, é nessas situações que ele pulsa, é através desse extremo que se tem o encontro possível com Deus – afinal, aquilo que como diz a própria Hilda, mais se aproxima do erótico.
(B.P)
A estreia de Hilda Hilst na prosa marcou a multiplicidade da escritora para as três modalidades após sua produção dramatúrgica e corrobora com a dificuldade criada para definição de gêneros puros na obra hilstiana, uma vez que Hilst compõe engenhosamente uma prosa essencialmente poética em Fluxo-Floema (1970).
O livro é dividido em cinco contos e usa de elementos da literatura contemporânea precedente e Hilst como o fluxo de consciência, sendo Samuel Beckett apontado como um dos principais influenciadores. No primeiro conto, Fluxo, percebe-se a presença do escritor isolado como personagem recorrente, retrato da visão sobre a própria Hilda.
Fluxo-Floema reforça ainda o pensamento geral de que Hilda Hilst era uma escritora difícil de ser lida, deixando-a novamente à margem do reconhecimento almejado pela agora não apenas poeta.
Datado de 1974, Júbilo, memória, noviciado da paixão, o primeiro livro de Hilst após sua expansão para a prosa, traz marcas das influências do gênero para a maturidade poética adquirida.
Dividido em seções, poeticamente nomeadas e que espelham as palavras reunidas nessas que formam uma colcha de retalhos do livro, costurando temas como o convite e súplica à pessoa amada; os anseios da paixão; a espera pelo encontro e a saudade; a celebração da vida como combate a inevitabilidade da morte; e seus temores e homenagens a grandes figuras do tempo da autora.
Na fase mais madura da obra hilstiana é claro que um dos grandes trunfos de sua extensa produção é a dosagem entre palavras diretas e a subjetividade, que aliadas levam a uma transcendência dos temas, na qual a aproximação de opostos como a ardência e a calmaria, o clamor e a confidência, a distância e a proximidade constroem a vastidão temática metafísica.
É um equívoco analisar a obra de Hilst como idealizações amorosas e devaneios de uma dona de casa e senhora da década de 1970. Em uma época de forte repressão nos âmbitos políticos e sociais no país, que refletiam na delimitação do papel da mulher, a autora foi capaz de antecipar a libertação que viria na década seguinte, expondo os desejos íntimos de um eu-lírico feminino, de modo que o sexo também participa ativamente de sua poética, em tom ainda transcendental.
O místico permeia toda a poesia expressa no conjunto da obra, elevando o ser amado, o sentimento, a devoção, os atos de amor e a morte a uma dimensão quase divina, do sagrado/profano.
As veias eróticas da literatura hilstiana se revelariam em A Obscena Senhora D. (1982), aproximando-se da pornografia pela qual viria a ser conhecida. O uso do fluxo de consciência constrói a narrativa metafísica no desvendamento da relação entre Hillé, narradora em conflito interno e Ehud, com o sexo e os desejos sendo expostos livremente.
Mesmo com a aclamação da crítica, coroada pelo Prêmio Jabuti em 1994 por Rútilo Nada, o anseio de Hilda Hilst por ser lida que atravessou toda sua trajetória na escrita ainda não havia sido saciado, visto que os editores ainda surpreendiam-se pelo fato de que as obras da escritora não vendiam quase nada, a despeito de seu sucesso nos fóruns e crítica literários.
Levando em conta a ideia geral que veiculava de uma escritora difícil de ser lida e essencialmente culta, Hilda despede-se do que chamava “literatura séria”, afirmando que o que vendia era a pornografia.
A década de 90 marca o início da Hilda Pornô Chic, cujo livro de estreia O Caderno Rosa de Lori Lambi, relato obsceno dos diários de uma menina de oito anos em situação de prostituição. Colocando em xeque valores morais, o livro escandaliza os meios literários por sua vulgaridade explícita e até mesmo editores recusaram-se a publicá-lo.
A chamada tetralogia obscena de Hilda Hilst seria composta ainda pelos volumes Contos d’escárnio/ Textos grotescos, Cartas de um Sedutor e Bufólicas, sendo esse último um volume de poesias.
Bufólicas destoa dos outros livros de poesia da Hilst ao apresentar um verso mais livre e o vocabulário explícito e próprio da temática sexual, transportando-se da metafísica erótica de fases anteriores para o físico obsceno nesse breve volume poético.
A morte, tema que trespassou a obra de Hilda Hilst, marcaria também sua vida. Na Casa do Sol, usando de aparelhos sonoros, estudou o Fenômeno da Voz Eletrônica. Na busca por ouvir a voz dos mortos, chegou a afirmar uma vez que captou um sinal que se assimilava a seu nome. As tentativas e buscas de Hilst foram retratadas no filme Hilda Hilst pede contato, de 2018, que estreou na FLIP — na qual era a autora homenageada.
O encontro de Hilda com a morte aconteceria em 2004, aos 73 anos. Uma das vozes mais transgressoras da literatura brasileira não gozaria em vida do reconhecimento que tanto ansiava, sentindo que suas obras não eram lidas.
Entretanto, nos últimos anos vê-se uma popularização da produção hilstiana, elevando-a para o cânone da literatura contemporânea e até mesmo apontada como escritora cult, reconhecendo-se para além do Pornô Chic, sua extensa obra poética constituída ao longo de 50 anos.
Em 2020, continuando o acaloramento do debate entorno da obra de Hilda, suscitado pela FLIP 2018 – na qual foi autora homenageada, além de ser tema de grande número de mesas – e pelo trabalho do Instituto Hilda Hilst, cuja sede localiza-se na Casa do Sol, atualmente museu memorial; os livros da autora têm sido reeditados e programações paralelas culturais vêm dado visibilidade à produção de Hilst.
A trajetória de Hilst, como mulher e escritora, pode ser definida como uma procura – por público, pelo amor, pelo sagrado, espaços físicos e metafísicos, seu lugar literário, pela morte, e acima de tudo, por contato. Nos versos poéticos de Hilda Hilst “Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo.” (G.P)
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