\\ ESPECIAIS
Para além da literatura, o poeta Ferreira Gullar pouco viajou de avião, deprimiu-se com a morte de seu gato e era chamado de “meia porção”.
Por Matheus Lopes Quirino
Imagem/ divulgação
Existiram – e ainda existem, para o bem da sociedade! – pessoas cujas habilidades, ou a simples existência, configuram-se como algo para além dos “nossos tempos”. Esses visionários não pediram ao universo para que assim viessem. Foram acometidos, dentre sua safra, por dons peculiares e mais apurados modos de ver. Convém analisar não só produção – dentre ela a literária –, mas grandes feitos como hábitos de cama e cozinha. Maneiras de falar no íntimo, gostos musicais, círculos de amizade e o que tal dito prodígio costumava ler.
Valem vir manias e cacoetes, também. Pois mesmos os prodigiosos não estão livres de erva daninha alguma. E foste prova neste andar da carruagem, há tanto tempo como não se usa mais tal locomotor, que as imperfeições pareciam brotar em certos vasos que continham terra mais fértil. Transformando estas mesmas imperfeições em características intrínsecas ao caráter visionário: escrevia muito bem, era alcoólatra; tocava divinamente, era o mais mulherengo dos homens – e, portanto, Deus não se agradaria de seu contracheque divino. Atuava fora de sério: era um viciado dos diabos!
A lista é grande. Ainda que inesquecíveis, hora e outra aparece uma efeméride para contemplar as nuances de um mito. E efeméride boa é aquela que desnuda não só o lado célebre da personagem, como o lado B, na privada vida ao caso. Como nos versos de: Quando nasci, um anjo torto desses que vieram na sombra disse: Vai Carlos, ser gauche na vida!
E não só Drummond foi um destes anjos meio tortos de vida, outro conterrâneo seu – de Rio de Janeiro – bateu as asas no verso, sendo ele forasteiro como Drummond, mas natural de São Luís do Maranhão. Trata-se de José Ribamar Ferreira, autor de um dos poemas mais primorosos da literatura brasileira, O Poema Sujo. Para o lado B de suas manias, Gullar não viajava de avião – desfalecia só de pensar na ideia. Ele também costumava fazer certas exigências culinárias, tendo o famoso spaghetti com camarões do Trattoria, em Copacabana convertido em meia porção para o escritor. Lá, ficou conhecido como “meia porção”. Gullar comia pouco, escrevia muito, vivia rodeado por um gato.
Para vias de destaque e indicação, pinço da seleta de poemas da série Boa Companhia, “A estrela”, poema miúdo e despretensioso que, como a vasta obra de Gullar, cravou-se como inaudita ode de amor.
Combustível fóssil de todo poeta – valho-me do trocadilho aos póstumos, cá, que foi a inspiração – à moda cama e mesa, eis que foi dedicado ao seu felino companheiro os versinhos: Gatinho, meu amigo, fazes ideia do que seja uma estrela?/ Dizem que todo este nosso imenso planeta coberto de oceanos e montanhas é menos que um grão de poeira se comparado a uma delas/Estrelas são explosões nucleares em cadeia numa sucessão que dura bilhões de anos/O mesmo que a eternidade…
E o agora defunto-autor tece seu poema à luz do luar, descortinado pelos olhos azuis do gato enquanto, entorpecido, transcende sua própria arte – que também se mostrou além dos padrões estéticos de sua época. E, como dito, não cabe à deixa dar os pormenores da escola de Ferreira Gullar e os Pignattari. Fiquemos com a cama e mesa, miudezas que causam ojeriza aos acadêmicos. Da estrela de Ferreira Gullar – cujo trauma fatal que levou seu felino proporcionou ao escritor a solidão, não tendo apadrinhado mais animalzinho de estimação –, ele é a própria, na literatura brasileira.
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