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Seu estilo buscava traduzir os assuntos da vida cotidiana a uma linguagem acessível ao público leitor
Por André Vieira
Imagem/ reprodução
Conhecido nacionalmente pela prosa ácida e texto afiado, Afonso Henrique de Lima Barreto, ou apenas Lima Barreto é mais destes escritores desconhecidos do grande público, por ser um estimado medalhão nacional que soube usar muito bem a sátira e a ironia como guias para o leitor. O escritor colaborou para um entendimento mais profundo sobre suas raízes brasileiras, enquanto o país redescobria sua identidade nacional e, à compreensão mais clara, da lógica perversa do funcionamento dos centros urbanos, sobretudo no mundo da política.
Nascido no Rio de Janeiro em 1891, negro, neto de ex-escravos, filho de um tipógrafo e de uma professora de escola primária, Barreto era afilhado do Visconde de Ouro Pedro e viveu uma infância repletada de contrastes: por um lado, graças ao padrinho, estudou em instituições de ensino destinadas às elites, teve acesso a livros e bens de consumo próprios a barões; por outro, viu seus irmãos crescendo em meio à pobreza com a morte da mãe e foi vítima de preconceito econômico e racial no ambiente aristocrático que frequentava.
Com o adoecimento mental do Visconde, a vida Lima Barreto dá uma guinada. Desiste dos estudos de Direito e da vida universitária e ingressa na Secretaria do Ministério da Guerra como escrivão – função que desempenhou até o fim da vida –, a fim de sustentar a família e angariar alguns fundos para suas incursões literárias. A espera não durou muito tempo. A partir de 1903, o escritor escreve para várias publicações literárias entre elas “O Malho”, “Fon-Fon” e “Carta” e constrói seu próprio estilo de escrita, mais preocupado em traduzir os assuntos da vida cotidiana a uma linguagem acessível ao público leitor, que aquela época se expandia cada vez mais com a democratização da leitura, do que estabelecer o clássico “puxa-saquismo” de poderosos e gramáticos, que queriam-lhe a cabeça a cada crônica ou conto publicado com seu português “incorreto, pobre e inferior”
Expoente da fase pré-modernista de escritores brasileiros, assim como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, e visionário na luta contra o higienismo social cultuado e praticado à época no Brasil por meio doutrinas “naturalistas” alemãs, Lima Barreto teve papel de destaque na mídia por ser o primeiro periodista a dar importância ao descaso social vivido na sociedade brasileira e no mundo. A série de críticas mais famosas foram direcionadas a Pereira Passos, então prefeito da Capital Federal, o Rio de Janeiro, empreendendo uma enorme grande reforma à cidade, que pôs abaixo todos os cortiços próximos ao centro e deslocou os moradores destas instalações aos morros. Os duros julgamentos, quase que diariamente, proferidos ao prefeito alçaram o autor ao título de “protetor dos desalentados” e causavam grandes comoções regionais.
Ao passar dos 33 anos é acometido pelo malaise do Visconde de Ouro e não resiste por muito tempo. Seis anos encharcados pelo álcool e a depressão tiraram o sentimento de viver do escritor e o levam ao esquecimento, assim como seu acervo literário, que permaneceu ignoto ao público não especializado décadas a fio.
Felizmente, em 2017, na 15ͣ edição da FLIP (Festival Literário de Paraty), Barreto foi homenageado pela “vanguarda e persistência pela luta contra o racismo e pela preservação da memória de um autor e jornalista que até hoje se faz indispensável”.
Seja pelo protagonismo que desempenhou em trazer luz ao (des)projeto de país que pendura desde a Primeira República, principalmente quanto à questão social, seja pela elegante prosa cáustica que arranca as gargalhadas mais profundas do mais cético dos seres, o presumível leitor de Lima Barreto se vê diante de um pomposo baú, repleto até a boca pelas histórias áureas e crônicas ebúrneas deste escritor carioca, um verdadeiro tesouro nacional.
Obras essenciais:
Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909)
Triste Fim de Policarpo Quaresma (1917)
Os Bruzundangas (1923)
O Subterrâneo do Morro do Castelo (Póstumo- 1997)
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