\\ ESPECIAIS
Ao mesmo tempo em que se discute o caráter problemático de monumentos de grande visibilidade, é necessário evidenciar espaços simbólicos e de presença dos povos escamoteados pelas narrativas hegemônicas
Por Nicole Palucci Marziale*, colaboração para Frentes Versos
URUCUM. Intervenção realizada por manifestantes no Monumento às Bandeiras em 2013, em protesto organizado por lideranças indígenas contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 Foto: Foto: Alex Falcão/Futura Press/Folhapress,3/10/2013.
De acordo com Riegl (1996), os monumentos, em seu sentido mais antigo e original, são obras erguidas com o propósito específico de manter feitos humanos vivos e presentes na consciência das futuras gerações. Para Jezernik (2011), os monumentos formam um importante inventário da nação moderna, sejam aqueles projetados em memória de um evento histórico específico ou personalidade, e posicionados em um espaço público. Junto a escolas, museus e teatros, eles representam a cultura oficial de um estado particular, e ajudam a construir a memória coletiva de seus habitantes (JEZERNIK, 2011). No entanto, o que acontece quando essa memória coletiva é majoritariamente construída sobre uma “única história”, como destaca Chimamanda Adichie, ou a “história dos vencedores”, como asseverou Benjamin, alertando para os perigos da concepção historicista/positivista da História?
No caso dos monumentos brasileiros, e, especificamente, da cidade de São Paulo, cabe problematizar aqueles criados, por exemplo, para exaltar os bandeirantes, figuras heroicas no imaginário paulista, imortalizados em diversas obras espalhadas pela cidade, como é o caso do Monumento às Bandeiras (1953), de Victor Brecheret. Entretanto, ainda pouco se discute, no cotidiano dos habitantes da metrópole, a respeito do significado das incursões bandeirantes, que implicaram na escravização de indígenas e na destruição de quilombos.
Nessa linha, teóricos decoloniais vêm destacando como existe um sistema de poder, tanto político e econômico como epistemológico, que implica na exclusão, em uma narrativa hegemônica e “oficial”, de personagens historicamente oprimidas, como é o caso de negros(as) e indígenas. Tal exclusão, por muito tempo, deu-se no âmbito da História, da História da arte, em produções culturais, na mídia, entre vários outros. Se Benjamin sugere que escovemos a História a contrapelo (LOWY, 2005), os teóricos decoloniais defendem a necessidade da decolonização do conhecimento, para que essas personagens por tanto tempo escamoteadas pelas histórias “oficiais”, possam assumir seu devido protagonismo.
Pretende-se, assim neste curto artigo, debater acerca da possibilidade de decolonização do conhecimento no que tange aos monumentos da cidade de São Paulo. Em primeiro lugar, realizar-se-á uma discussão acerca do significado atual de uma obra como o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (1953), assentado em uma versão hegemônica da História, contrastando com a abordagem do projeto Cartografia Negra, criado em 2018 e de caráter decolonial, que tem o objetivo de exaltar simbolicamente o papel da população e da cultura afrodescendente no desenvolvimento do país e do município de São Paulo.
Monumento às Bandeiras
A escultura está localizada na praça Armando Salles Oliveira, em frente ao Parque do Ibirapuera. Foi projetada originalmente pelo escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret em 1920, visando as comemorações do Centenário da Independência, que aconteceriam em 1922, tendo sido encomendada por um grupo de intelectuais paulistas conhecidos como “os futuristas de São Paulo” (PECCININI, 2013), que buscavam “a modernização da cultura, aliada a um forte sentimento de nativismo” (PECCININI, 2013, p. 69)
O projeto acabou sendo adiado e foi retomado apenas em 1936, sob o mandato de Armando Salles de Oliveira como governador de São Paulo. Na versão de 1920, a escultura não apresentava distinção entre os tipos representados, “eram todos bandeirantes” (MARINS, 1999, p. 14), de modo que se visava à sua glorificação, numa alusão à pujança das elites paulistas. Já em 1936, os modernistas passaram a abandonar tal associação, que teria migrado para segmentos políticos mais conservadores. No projeto final, acrescenta-se, à figura do bandeirantes (brancos), índios, negros e mamelucos (MARINS,1999).
O acréscimo desses outros personagens buscou ampliar a identificação dos paulistas e, em âmbito mais amplo, dos brasileiros, com o monumento. Assim, a exaltação da figura dos bandeirantes em si migra para uma exaltação do “espírito das bandeiras, algo bem mais assimilável nos anos do Estado Novo” (MARINS, 1999, p. 18).
A escultura, inaugurada em 1953, é organizada de maneira hierárquica, de modo que dois bandeirantes, sobre seus cavalos, guiam uma legião de índios e negros que os seguem, carregando uma canoa. Os personagens são robustos, angulosos, em que se verifica a intenção do escultor em deixar transparecer a materialidade bruta do granito. Ademais, são anônimos, despersonalizados (MARINS, 1999). Há, entretanto, características que os diferenciam: os indígenas têm cabelos longos, levam tangas e colares, e as mulheres carregam seus filhos no colo; os negros possuem os cabelos curtos e lábios mais grossos; os bandeirantes são barbados e levam cruzes ao pescoço. Curiosamente, no monumento, o único personagem identificado é o próprio Brecheret, de modo que a figura que o representa traz em seu ombro direito a inscrição: “autorretrato do escultor Victor Brecheret 02-10-1937” (QUINTAL, 2018, p. 37).
Como vimos, ao longo dos anos, o projeto do monumento se transmuta da intenção de representação dos bandeirantes como símbolo da identidade e de uma suposta pujança paulista para uma tentativa de identificação de “todos os brasileiros”, como afinal define o próprio Brecheret, em 1952: “[...] aqui estão as raças que formaram o Brasil. Aqui se encontram o índio, o negro e o branco” (BATISTA, M. R. apud MARINS, 1999, p. 18).
Entretanto, resta-nos indagar: o que significa, do ponto de vista histórico, para os povos negros e indígenas, sua representação em uma obra como o Monumento às Bandeiras? De acordo com Fabris, a exaltação primitivista de Brecheret deve ser interpretada como um fato meramente formal, de modo que “o índio, enquanto ser físico, não enquanto cultura, é um motivo e não fonte de renovação, de revisão dos conceitos estéticos como acontecia na Europa. (FABRIS apud QUINTAL, 2018, p. 39).
Se o Monumento às Bandeiras se enquadra em um contexto histórico moderno de exaltação ao “progresso” e de uma forjada identidade nacional, atualmente, há um distanciamento suficiente para percebermos como o suposto progresso representado pela marcha bandeirante se fez às custas do sofrimento e opressão de milhares de indivíduos. Individualidade essa que lhes foi usurpada nas representações modernistas, tendo sido despersonalizados e reduzidos, como afirmou Fabris, a meros “motivos”.
Não à toa, o monumento sofreu diversas intervenções ao longo dos anos, que buscaram evidenciar seu caráter anacrônico, tendo se transformado em um símbolo de opressão contra as minorias sociais. Por outro lado, trata-se de um dos monumentos com maior visibilidade na cidade de São Paulo, por sua localização e monumentalidade, o que faz com que muitos dos que por ali passam ou o fotografam não compreendam ao certo seu significado.
Como seria possível conscientizar essa população? Como deveríamos proceder a respeito do Monumento às Bandeiras, e outros que glorificam figuras opressoras da história? Deveríamos exigir sua retirada? Ou, ao menos, deixar visíveis as marcas das intervenções neles realizadas? Trata-se de uma discussão polêmica: há os que defendam sua retirada, enquanto, para outros, trata-se de uma decisão muito radical, pois, apesar de contrários ao que o monumento representa, temem que sua retirada possa apagar da História um capítulo doloroso que deve não apenas ser lembrado, mas denunciado e discutido. Deveriam então ser removidos do espaço público e abrigados em museus? Essas decisões devem partir da vontade popular, e, para tanto, é premente que essas questões sejam evidenciadas e debatidas em todos os espaços possíveis: nas escolas, nos museus, no espaço público, nas redes, a fim de se gerar conscientização.
Ao mesmo tempo, é premente que exaltemos as figuras silenciadas e vilipendiadas, na História, pela versão dos “vencedores”, como é o caso dos negros e indígenas. Como exemplo, trazemos aqui propostas de valorização de espaços ligados à presença afrodescendente na cidade de São Paulo, bem como tratamos da importância da criação de monumentos que valorizem figuras importantes de resistência, como é o caso de Zumbi dos Palmares.
Destaca-se o projeto Cartografia Negra, idealizado por Raíssa de Oliveira, Carolina Vieira e Pedro Vinicius Alves, e que propõem a Volta Negra, um roteiro realizado pelo centro de São Paulo com o objetivo de revisitar e ressignificar territórios negros cujas histórias foram apagadas ao longo dos anos, em que se pode apontar uma busca pela referida descolonização do conhecimento.
O roteiro inclui lugares como o Beco dos Aflitos, que abriga a Capela dos Aflitos, e onde ficava o cemitério de mesmo nome, no qual, até 1858, eram enterrados indivíduos escravizados. Em 2020, um Projeto de Lei para a criação do Memorial dos Aflitos no local foi aprovada, graças ao engajamento do Movimento Negro. Vale destacar que, antes de ser um bairro conhecido por abrigar a cultura e os imigrantes asiáticos, a Liberdade recebia escravizados fugitivos condenados à morte. Assim, a Praça da Liberdade, era o Largo da Forca; o Largo Sete de Setembro, o Largo do Pelourinho.
O trajeto passa, ainda, pelo Largo do Paissandú, onde está localizada a escultura da Mãe Preta, feita em bronze por Júlio Guerra e instalada em 1955, em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. O local é um ponto de referência para a comunidade afrodescendente de São Paulo, que ali realiza comemorações e manifestações religiosas e artísticas.
O percurso inclui, ademais, a Praça Antônio Prado, onde, em 2016, foi instalado o Monumento a Zumbi, feito em bronze, granito e pedra, fruto de um concurso cultural que visou selecionar um (a) artista negro (a) para realizá-lo. O artista selecionado foi José Maria dos Santos (Jofe).
Diante do exposto, pudemos discutir a respeito de como lidar, na contemporaneidade, com monumentos que representam um passado de dor e exploração em nossa História. Mesmo que não haja ainda um consenso acerca da possibilidade de sua retirada do espaço público, é urgente que esse tema seja discutido tanto em salas de aula, como em propostas educativas em espaços não formais, nas redes, em incursões pelo espaço público. Ao mesmo tempo em que se discute o caráter problemático de monumentos de grande visibilidade, é necessário evidenciar espaços simbólicos e de presença dos povos escamoteados pelas narrativas hegemônicas, como nos mostra o exemplo do projeto Cartografia Negra, bem como a luta constante pela afirmação de figuras de resistência, como no caso do monumento a Zumbi e da proposta para a construção do Memorial dos Aflitos.
REFERÊNCIAS
ADICHIE, C. N. O perigo de uma única história. TED Talk. 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt>. Acesso em: 26/03/20.
CANOFRE, Fernanda. Do largo da Memória ao Paissandu, passeio mapeia história negra em SP. Folha de São Paulo, 17 nov. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/do-largo-da-memoria-ao-paissandu-passeio-mapeia-historia-negra-em-sp.shtml>. Acesso em 29/05/20.
Cartografia Negra. O projeto. Disponível em: <https://cartografianegra.wordpress.com/>. Acesso em: 29/05/20.
JEZERNIK, Božidar. No Monuments, No History, No Past: Monuments and Memory. In: HUDSON, R.; BOWMAN, G (Orgs.). After Yugoslavia. Identities and Politics within the Successor States. Palgrave Macmillan, 2011.
LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses sobre o conceito da história. São Paulo: Boitempo, 2005.
MARINS, Paulo César Garcez. O Parque Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do Museu Paulista, história e cultura material, São Paulo, v. 6-7, p. 9-36, 1998-1999.
PECCININI, D.V.M. “Bandeiras” e “Cristo Redentor”, as raízes da formação do país, monumentos ícones diametralmente opostos. 22º Encontro Nacional Anpap, 2013, p. 65-85.
RIEGL, Alois. The modern cult of monuments: its essence and its development In: PRICE, N.; TALLEY, M.K; VACCARO, A.M. Historical and Philosophical Issues in the Conservation of Cultural Heritage. The Getty Conservation Institute, 1996.
* É pesquisadora e aluna do curso de Arte, História, Crítica e Curadoria da PUC-SP.
(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da Frentes Versos)
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