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Apoiada por financiamento coletivo, HQ conta a história do inimigo número um da ditadura
Por André Vieira
Brasil 2020. À exceção da pandemia mundial e da crise financeira que se espreita no futuro incerto do pós-Covid, parece que não estamos muito distantes de 1964 e os subsequentes Anos de Chumbo que moldaram a cultura, a natureza e a sociedade brasileira no passado.
O recente desmonte da Cinemateca, a falta de políticas permanentes eficazes para o bom uso da Amazônia e outros biomas brasileiros e a alta de assassinatos no País, mesmo com as medidas de distanciamento social, são provas que o tempo passou, mas continuamos os mesmos. Não amadurecemos como sociedade. Nem sabemos como, nem onde erramos.
“Estamos numa encruzilhada histórica muito semelhante àquela do golpe de 1964: não lutamos hoje contra uma oposição política, mas sim contra uma ameaça à democracia”, avalia o roteirista Rogério Faria na conversa à Frentes Versos sobre o lançamento da HQ Marighella #Livre, quadrinho que recupera a história do intelectual, político e guerrilheiro brasileiro Carlos Marighella e a relaciona com o contexto atual.
Impresso em preto e branco, o quadrinho não se pretende a ser uma biografia de Marighella, nem uma obra imparcial dos olhares dos autores da HQ. Ao contrário, como afirma Rogério, o objetivo do gibi é reinserir o ex-intelectual e guerrilheiro no debate público, “minha grande intenção com o projeto é debater a figura do Marighella, é debater o período que ele viveu. Se irão concordar comigo ou não irão, isso já é parte do debate.”.
Sucesso na campanha do Catarse, com quase de R$ 14,000 reais arrecadados, e rápida divulgação na mídia e nas redes sociais, o projeto também foi alvo de ataques virtuais desde seu começo na plataforma: “antes de publicarmos pela Draco [editora] os ataques eram pra que não publicássemos, agora que publicamos os ataques são para que eles não leiam, que a gente seja cancelado”.
Para Rogério, isso representa um fundo social mais profundo no imaginário popular, “existe um medo tão primitivo incutido nas pessoas, por aqueles que realmente se sentem intimidados pela figura do Marighella, que geralmente são aqueles que estão no poder”.
Composto em três partes ditas cronológicas, a banda desenhada reúne desenhos de Ricardo Sousa e do premiado Jefferson Costa, autor de Jeremias: Pele, ganhador do Jabuti de quadrinhos do ano de 2019, além das colagens de phillzr, na capa e contracapa. O prefácio e o posfácio ficaram a cargo da influenciadora, Cynara Menezes [Socialista Morena] e do jornalista Luis Nassif, respectivamente.
Realizada por meio de uma ligação de vídeo do Zoom, como os protocolos sanitários pedem, a entrevista a seguir é fruto de uma conversa longa sobre os triunfos da campanha, as possíveis similaridades de destinos entre Marighella e Lula e a possibilidade de um novo presente a partir das discussões de um passado mal resolvido.
Confira os melhores trechos. (Acesse a entrevista na íntegra clicando aqui).
Frentes Versos - Como surgiu essa ideia de produzir a HQ? Inicialmente vocês disseram, na campanha no Catarse, que vocês queriam fazer um quadrinho que representasse a prisão dele no período do Estado Novo. Como que surgiu essa ideia?
Rogério Faria - A ideia de fazer um quadrinho do Marighella surge em 2017. Porque desde as Jornadas de Junho, em 2013, eu tentava entender o que rolava no país e eu sentia que me faltavam alguns fundamentos para entender por que aquele política conciliatória do petismo tinha falhado.
A partir daí vou atrás de leituras e encontro a biografia de comunistas no Brasil: Luís Carlos Prestes, Olga Benário e finalmente o próprio Marighella. E ele [Marighella] é um personagem apaixonante pelas lutas que ele tinha: seus valores eram mais importantes do que a própria vida.
Então, já em 2017 eu resolvi fazer um gibizinho da história dele. Algo simples, 20 páginas sobre um dos acontecimentos que mais me chamaram a atenção que foi a prisão dele em 1936, no regime pré-Estado Novo. Convidei o Ricardo Sousa para ser o desenhista que topou na hora o projeto.
Daí, no final de setembro do ano passado, a gente lançou a campanha no Catarse para financiar o gibizinho. A ideia inicial era arrecadar R$ 2.000 para imprimir uns 100 gibis e pronto. Já era um sucesso a nossa campanha.
FV - Curioso que ela arrecadou quase R$ 14.000 e mobilizou muito mais gente que vocês estavam esperando.
RF - Pois é, cara. Ela teve uma repercussão maior do que a gente esperava que ela tivesse. Aí, como a resposta foi muito boa à campanha, nós decidimos colocar mais uma história em quadrinhos que é a prisão dele em 1964 no cinema, à época já com 52 anos.
Meio na ousadia, nós também convidamos a Cynara Menezes [Socialista Morena] e Luis Nassif para fazerem o prefácio e o posfácio, respectivamente, e que toparam prontamente o convite. Surpreenderam até a gente [risos].
Então, de certa forma o projeto acabou ficando no centro das atenções. Tanto que é que recebemos o convite da editora Draco para publicar o gibi pelo selo editorial deles. A partir daí a publicação tomou outra cara, outra qualidade de produto, acabamento, divulgação que possibilitou para gente colocar esse produto em livrarias e em outros postos de venda (comércio digital e talz).
FV - E de onde veio a ideia de acrescentar mais uma história à HQ?
RF- Em fevereiro deste ano seria a data pra entregarmos as recompensas aos apoiadores no Catarse. Mas por provocação de nosso editor na Draco, Rafael Fernandes, decidimos concluir nosso gibi com a última história da vida de Marighella, que é a sua execução em 1969.
Aí ousamos novamente e convidamos o Jefferson Costa, quadrinista renomado, ganhador de um Jabuti com o Jeremias: Pele, em 2019. Prontamente ele topa nosso convite e faz com que o projeto vá muito além de nossa pretensão inicial de uma historinha e com cem cópias manuais.
FV - Realmente o produto final é algo formidável. Mas me conta um pouco da campanha para divulgação: durante a campanha, vocês tiveram que fazer algum plano de marketing para promover o gibi, ou pela relevância do nome do Marighella, isso não foi necessário?
RF - Não foi preciso. A gente não usou nenhuma estratégia de impulsionar a campanha que precisasse injetar dinheiro. Claro que divulgamos em algumas dezenas de grupos de quadrinhos no Facebook, em alguns grupos de esquerda, mas o verdadeiro "empurrão" que levamos foi a matéria da Folha [de S.Paulo].
Lançamos a campanha no final de setembro e coincidentemente a Folha preparava uma matéria sobre o filme do Wagner Moura — que não sai no Brasil nunca, né? Assim, naquele final de semana, num sábado, foi quando a campanha explodiu pra gente.
Outras mídias alternativas também fizeram essa divulgação do projeto, mas creio que foi graças ao próprio nome Marighella que ele [projeto] foi pra frente.
FV - Isso é surpreendente tendo em vista a má reputação da figura de Marighella. Ao que você credita esse sucesso da campanha?
RF - De fato, Marighella é uma figura bem complexa e pouco compreendida hoje em dia. Ele foi um homem do seu tempo, tentando lutar dentro das regras do jogo, até aquele atentando que sofreu no cinema em 1964. Foi deputado constituinte, militante partidário, ativista político. Foi preso diversas vezes.
E só foi depois desse atentando que ele desiste do "jogar as regras do jogo" e fazer uso da força — ainda sim, desigual — contra a violência que o governo impunha a ele.
Já hoje em dia, tanto a esquerda quanto a direita, e seus haters, pouco conhecem a sua biografia. As pessoas que odeiam o Marighella na verdade pouco o conhecem, é um total desconhecimento da biografia dele.
FV - Me parece um caso de pura ignorância.
RF - De fato. Esse ódio que carregam do Marighella é um ódio para não conhecê-lo.
Sentimos isso na primeira noite que laçamos a campanha. No dia seguinte à publicação nos grupos de quadrinhos do Facebook vieram dezenas de mensagens, centenas de interações com ataques diretos à figura do Marighella.
Mas o ódio em si não era direcionado ao produto, ao nosso quadrinho ou a abordagem que eu tinha dado à história — até porque ninguém tinha lido o quadrinho. Os ataques eram pra impedir que falássemos, que publicássemos a nossa história.
Então, eu digo: existe um medo tão primitivo incutido nas pessoas, por aqueles que realmente se sentem intimidados pela figura do Marighella, que geralmente são aqueles que estão no poder. Assim, se cria essa vacina contra Marighella: as pessoas sequer querem conhecê-lo.
FV - Podemos separar a obra em três partes: sua primeira prisão em 1936, o atentado no cinema em 1964 e a emboscada na Alameda Casa Branca. De alguma forma você acha que esses três momentos dialogam, de alguma forma, com o período que a esquerda viveu e vive hoje?
RF - Avalio que sim. O tema que uniu esses três momentos foi uma unidade temática que convergisse bem entre as histórias: a resistência de Marighella, por isso "Marighella #Livre".
Marighella era um homem de ação, mas sobretudo um intelectual em ação. Assim você vê nos quadrinhos uma pessoa que era totalmente obstinada com sua visão de mundo, acreditando que ele era um dos agentes dessa transformação no mundo.
Dizem hoje, sobretudo na esquerda, que carecemos de Marighellas ou outras figuras ativas pra luta. Contudo, sabemos que existe muita gente lutando, nos campos, nas cidades, nas academias, só não sabemos que existem porque não aparecem nos canais de mídia que consumirmos.
A luta começa antes de Marighella, passa por Marighella e permanece até hoje. Marighella é uma das figuras referenciais dessa luta, mas a luta da esquerda e da democracia não se reduz àquele momento.
FV - Ao ler o gibi é impossível não fazer relação direta com a prisão do ex-presidente Lula em 2018, principalmente se relacionarmos suas biografias.Você compartilha dessa impressão?
RF - Acredito que sim. Na prisão do Lula, temos novamente o Estado utilizando de seus instrumentos [jurídicos], manipulando as suas regras para conseguir atingir seus objetivos. Naquele caso, em específico, era um Estado agindo contra um cidadão.
No processo que tivemos acesso [com o Vaza-Jato] o Estado cometeu uma série de abusos, com várias "coincidências políticas" em momento políticos propensos, e fica claro que houve sim parcialidade e uma instrumentalização do aparato judiciário para atingir um objetivo político, que à época era tirá-lo do jogo político [impedir que ele participasse das eleições, por meio da lei de Ficha Limpa]
Agora, a força popular que ele [Lula] tem e essa obstinação dele [para continuar como candidato político para 2018] foi o que o levou o Estado a ir até às últimas consequências para poder silenciá-lo e tirá-lo do jogo [político]. Então nesse sentido, acho que assim como Marighella, que poderia ter cedido à pressão e ter desistido das suas pautas e suas lutas, como [Lula] esticou a corda até o máximo e arcou com as consequências.
Por outro lado, é lamentável que na história do nosso País e do Judiciário sempre tenhamos de violência por parte do Estado para justificar, muitas vezes, algum fim político. Com Marighella em 1964 e com Lula em 2018.
FV - Marighella foi responsável por denunciar dois tipos de violência que aconteciam simultaneamente pelo Estado. A primeira a propriamente física, violenta e a segunda a falta de projetos e investimentos públicos para populações desassistidas. Tendo em vista essa trajetória e a provocação da Cynara Menezes [Socialista Morena], você acredita que o Marighella consiga, por meio da HQ, circular hoje livremente?
RF - Não consegue. É só ter em vista que o filme [do diretor Wagner Moura] não consegue ser lançado.
Por termos feito o lançamento do quadrinho nesse período de pandemia, a "circulação do Marighella" foi feita apenas dentro dos meios e círculos que não são hostis a nós; mas, ainda sim, nos próprios canais de divulgação, a gente vem recebendo muito ataque. Por outro lado, não posso dizer como seria a relação pública [sem distanciamento social] em eventos e livrarias.
Nós tínhamos certa apreensão em fazer o lançamento presencial da HQ, usando como parâmetro o que aconteceu com o filme do Marighella. Durante a gravação do filme, um grupo de extrema-direita se organizou no Facebook pra violentamente tentar parar uma gravação em São Paulo.
Contudo, a gente ainda matinha uma certa expectativa em saber se o Marighella poderia circular livre ou não, mas como tudo no País, isso fica adiado.
FV - Embora não se possa encontrar presencialmente para falar sobre Marighella suas ideias continuam a ser propagadas pelas redes, né?
RF - Sim, suas ideias voam. O que nós temos hoje é ainda um certo desconhecimento sobre a história do Marighella. Falta um conhecimento não para idolatrá-lo ou torná-lo um herói nacional, pelo contrário, falta conhecimento crítico para termos uma visão ampla e diversa da sua figura, pois muito das batalhas que ele travava ficaram "enterradas ali com ele" para só depois serem desenterradas para encararmos os mesmos problemas, os mesmos dilemas.
Perdemos 50 anos olhando para esse histórico de lutas, para ficar batendo cabeça, de novo com essas relações institucionais e da própria esquerda.
FV - Nessa linha, acho que precisamos revisitar aqueles personagens daquele período para entender o nosso cenário atual.
Concordo. A minha intenção com a HQ é trazer uma visão minha do Marighella. Nunca tivemos a pretensão de trazer uma visão neutra, porque seria uma mentira para mim assim como para o leitor do gibi. Essa questão de neutralidade sempre abarca aquela coisa: "neutro é quem concorda comigo, se não concorda já é inimigo". Logo não existe uma neutralidade pura.
Então, o quadrinho "Marighella #Livre" é uma leitura minha sobre a biografia do Marighella, sobre a história do Marighella. Mas minha grande intenção com o projeto é debater a figura do Marighella, é debater o período que ele viveu. Se irão concordar comigo ou não irão, isso já é parte do debate. Mas só por poder trazer essa discussão sobre o quadrinho e para o período em que ele viveu e incentivá-las a participar dela me deixa bem feliz e satisfeito.
RF - Creio que você deixa essa intenção clara na segunda história da HQ, onde os espectadores do filme do Marighella registram as cenas de violência com smartphones.
Nesse segundo quadrinho, que registra a prisão dele [Marighella] em 1964, foi construído na última etapa de financiamento do projeto, em novembro 2019. Daí, eu resolvi fazer esse quadrinho ancorado nos dias de hoje por dois motivos, o primeiro para facilitar pro desenhista não ficar pesquisando muita referência da época — porque estávamos em reta de entrega do gibi — e pra também fazer uma alegoria com a violência do Estado e policial que a gente vive hoje, que resguarda essas similaridades com o período que a gente tá vivendo.
Então, ali [na segunda parte do gibi] a gente ambienta a história no dia de hoje: a luta dele, os inimigos dele, a força dele, as causas dele ainda continuam atuais.
FV - Nesse contexto, você crê que o gibi do Marighella juntamente com o documentário produzido por sua sobrinha, Isa Grinspum Ferraz, ajudam a romper com o silêncio vivido no século passado e contribuem com o debate?
RF - Acredito que sim. Esse quadrinho é uma tentativa nossa, minha, do Ricardo Sousa e do Jefferson do Costa de fazer nossa parte na tentativa de trazer esse debate ao público.
Só que há muita resistência do público para termos um alcance que esse debate merece. Assim, acho que o filme [do Wagner Moura] é mais um esforço nesse sentido e a partir dele teremos uma difusão muito maior da causa.
Embora não haja nenhuma coordenação entre nós, quadrinistas, documentaristas e cineastas, esses projetos são inciativas, muitas vezes isoladas de não só debater o Marighella, mas debater esse período sombrio de nosso País, mas também debater não só o passado, mas o próprio presente e até o próprio futuro: o que nós queremos ser como país.
FV - Por fim, quais são os planos futuros para editora Draco? Outro projeto de sucesso pela frente?
RF - Na Draco, estamos desenvolvimento vários trabalhos simultâneos nesse período de pandemia. Ela [editora] tem um quadrinho que é Ditadura no Ar, do Rafael Fernandes, que também fala sobre o mesmo período histórico do Marighella. É um quadrinho superinteressante ganhador do HQMIX.
No momento, como outros projetos do Catarse temos uma coletânea de quadrinhos que começa a campanha nesta quarta. O lançamento se dá em memória dos 75 anos do fim do conflito agora em setembro.
A Draco tem um catálogo bem bacana, Mesmo preocupado com o entretenimento, é voltado ao debate de várias questões sociais e inseridas na pauta pública. Exemplo disso são a coletânea Na Quebrada,que conta histórias que se passam na periferia e a coletânea Sangue no Olho, que é um western contemporâneo, [ambos] discutem não apenas questões urbanas, de violência urbana, mas todas a grande palheta de violências contra classes sociais.
Foi um prazer falar contigo, Rogério. Obrigado pela conversa.
O prazer foi meu. Um abraço.
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