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os Racionais nos mostram o quão poderoso são artisticamente construindo metáforas, antíteses e onomatopeias fora do comum com ritmos entoados de forma a dialogar com as remixagens de Jazz, Funk, Blues que KL Jay produz
Por Raul Sales*, colaboração para Frentes Versos
Em princípio é importante contextualizarmos quem são os quatro pretos mais perigosos do Brasil. Os Racionais MC’s é um grupo brasileiro de RAP que surgiu no final dos anos 80. Antes da formação, eles gravaram duas faixas em 1988 na coletânea Consciência Black: Pânico na Zona Sul e Tempos Difíceis. Formado pelos integrantes Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira, 1970) e Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador, 1969), respectivamente Zona Sul, e os integrantes da Zona Norte Edi Rock, ou Cocão, (Edivaldo Pereira Alves, 1970) e DJ KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões, 1969).
Holocausto Urbano é o disco de estreia do grupo brasileiro de RAP lançado pela gravadora Zimbabwe em agosto de 1990. Em meados de 1993, o disco Raio X do Brasil é lançado nas ruas, contendo clássicos do RAP nacional, que foram ouvidas em todas periferias de São Paulo, músicas como "Homem na Estrada" e "Fim de Semana no Parque" foram obras-primas tocadas em grande parte dos sons de carros e em eventos de Hip Hop. O retrato da potência e cultura periférica na música, daria início ao seu próximo disco com fortes marcas políticas e sócio-históricas no contexto brasileiro.
No final de 1997, foi lançado o disco Sobrevivendo no Inferno, pelo selo Cosa Nostra (do próprio grupo), que vendeu cerca de 500 mil cópias. Entre os grandes sucessos deste álbum estão "Diário de um Detento", "Fórmula Mágica da Paz", "Capítulo 4, Versículo 3", "Rapaz Comum" e "Mágico de Oz". Com esse disco, o Racionais MC's deixa de ser um fenômeno na periferia paulistana para fazer sucesso entre outros grupos sociais de diversas regiões do País. Além disso, o grupo adotou uma postura antimídia. Um exemplo notório foi a cerimônia de premiação do Video Music Brasil (VMB), da MTV Brasil, quando a emissora teve dificuldades para levar o grupo à premiação e Mano Brown ressaltou, durante o evento, que sua mãe havia lavado muita roupa de '"playboy", para dar forças a ele e fazê-lo chegar até ali.
Pela longa trajetória do grupo, é evidente que a massa conservadora passou a questionar a importância do Racionais MC's na música brasileira, já que nem sempre compreendiam a abordagem do retrato da cultura periférica através de suas canções cantadas pelo grupo e por todos os cantos de São Paulo, até mesmo os posicionamentos políticos do grupo passaram a ser questionados e virar alvo de críticas por aqueles que marginalizavam a cultura Hip Hop. Nesta análise de “Capítulo 4, Versículo 3” contudo, não nos debruçaremos em nenhum desses assuntos a fundo, por mais que, conforme formos analisando a obra, esbarraremos em algumas dessas questões, já que o grupo não é isento de ações políticas e suas músicas têm como principal temática a afirmação cultural periférica. Dessa forma, relacionaremos os estudos precisos de Domício Proença, que aborda a diferenciação entre texto não literário, cujo caráter é informativo, e texto literário, cujo objetivo é a configuração de uma imagem poética, e ideias profundas como as de Alfredo Bosi, que busca a explicação sobre a imagem poética como um modo de apreensão do mundo.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a canção escolhida para análise é lida de forma “violenta” por muitos consumidores médios de música e é de entendimento destes que o grupo faz menção a algum tipo de apologia na música. Em nosso entendimento, o que a canção faz é na verdade relatar e reportar as estatísticas da época, narrando os acontecimentos cotidianos de jovens da periferia de São Paulo.
“Capítulo 4 Versículo 3” nos possibilita ouvir informações precisas da época de 1997, ano de lançamento do disco Sobrevivendo no inferno e mesmo que já cantada nos eventos de RAP em anos anteriores, a canção tem o caráter informativo da época ou seja, possui conteúdo capaz de informar — questões como estatísticas e dados do momento em que a música foi lançada — por meio de um caráter poético singular, fazendo com que a forma de produção literária do grupo seja única e subjetiva dentro desse gênero lírico, permitindo a reflexão através de seus versos, cantados facilmente pelos seus fãs até hoje.
A partir da discussão de Domício Proença sobre a linguagem literária na música, que traz referências de texto não literário, de caráter puramente informativo, pude perceber que no início da canção "Capítulo 4 Versículo 3" o eu-lírico primo preto, nos informa as estatísticas de violência policial aos jovens de periferia, homicídios a pessoas negras cometidos pela polícia, porcentagem de alunos negros nas universidades brasileiras e mortes violentas de jovens negros em São Paulo, confira nos versos a seguir:
"60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é primo preto, mais um sobrevivente"
Quando Domício afirma: “A fala ou discurso é, no uso cotidiano, um instrumento da informação e da ação", é a esse tipo de informação que ele se refere a uma fala que seja instrumento de informação como as estatísticas levantadas no início da canção. Nesse sentido, é a partir dessas estatísticas que a canção — com a batida criada pelo DJ KL Jay — dá início ao texto literário da canção, cujo objetivo é a configuração de uma imagem poética. E é neste verso a seguir que o discurso literário se encontra a serviço da criação artística:
"Você vai terminar tipo o outro mano lá
Que era um preto tipo A ninguém tava numa
Mó estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma
Um jeito humilde de ser no trampo e no rolê
Curtia um funk jogava uma bola
Buscava a preta dele no portão da escola
Exemplo pra nóis, mó moral, mó ibope"
Nestes versos, Brown introduz sua referência cotidiana em seu espaço social, ou seja, um bom exemplo a ser seguido naquele lugar. Ele faz essa introdução enaltecendo seu “exemplo” para que posteriormente, este seja retratado a mudança em seu caráter, se tornando um exemplo de luxúria e imoralidade, criando uma relação de intersecção com duas cidades bíblicas a partir da figura de linguagem metafórica, que é feito sem o uso do conector e a partir de uma perspectiva pessoal. Confira a seguir:
"Mas começou a colar com os branquinho do shopping
(Aí já era) ih mano outra vida, outro pique
Só mina de elite, balada vários drinque,
Puta de butique, toda aquela porra sexo sem limite
Sodoma e Gomorra."
A semelhança é apresentada quando o autor relaciona a vida do sujeito de cunho sexual e imoral com o que, segundo a Bíblia, Sodoma e Gomorra representava sobre seus habitantes. De acordo com as passagens, os sodomitas eram conhecidos por serem abusadores sexuais, gananciosos e imorais, para afinal, segundo os relatos (bíblicos), a cidade ser destruída por Deus. Outro exemplo de figura de linguagem que temos na canção é a antítese.
Reparem bem:
“Na queda ou na ascensão minha atitude vai além
E tem disposição pro mal e pro bem”
A figura de linguagem antítese é a aproximação de opostos, e como no exemplo citado, temos a aproximação do “mal” e do “bem” sendo conciliáveis dentro de qualquer situação. Seja ela numa situação ruim como queda ou situação melhor como ascensão. Além da metáfora e antítese como figuras de linguagem, também temos diversos exemplos de onomatopeias dentro desta canção, note uma delas no trecho a seguir:
“Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério
Explode sua cara por um toca fita velho
Click plau plau plau e acabou sem dó e sem dor
Foda-se sua cor, limpa o sangue com a camisa”
Neste verso é retratado uma situação de assalto, e é sobre a onomatopeia expressada como disparos de uma pistola que abordo aqui. A onomatopeia é uma figura de linguagem que tem por objetivo expressar sons por meio de palavras, quando Brown diz “click” e “plau plau plau” se referindo à pistola sendo engatilhada e utilizada num assalto, é onde a onomatopeia se faz presente dentro do verso.
Podemos notar que na canção dos Racionais os versos são cantados com rimas, ou seja, existe similaridade sonora em uma ou mais sílabas que causam a reiteração de sons, confira a partir do trecho a seguir:
"Irmão o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda sozinho
É, transforma um preto tipo A num neguinho"
A estrofe apresentada acima resulta na combinação de classificação quanto à posição na estrofe com a forma de: AA/BB/CC. Já que os versos rimam de dois em dois, criando um formato de rimas emparelhadas ou paralelas, nas quais também podemos perceber um ritmo, marcado pela entoação do cantor, ou seja, pela leitura ou canto, pois não há regularidade no número de sílabas poéticas, caracterizando os versos como livres. Podemos notar outro exemplo de ritmo marcado pela entoação no verso a seguir cantado por Ice Blue:
“Faz frio em São Paulo pra mim tá sempre bom
Eu tô na rua de bombeta e moletom, dim dim dom
Rap é o som que emana no Opala marrom”
O ritmo cantado tem a marca de repetição da sílaba “om”, impondo um ritmo marcado no verso, caracterizado como livre. Ice Blue também cria imagens poéticas neste verso acima, mas isso será retratado mais adiante no texto.
Além das discussões teóricas de Domício, também encontramos na obra dos Racionais os profundos pensamentos de Alfredo Bosi, que nos faz refletir acerca da explicação sobre a imagem poética como um modo de apreensão do mundo. O professor e historiador da literatura brasileira explica que: “formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens." A partir disso, levo em consideração que a imagem poética antes de tudo, traz a condição do que é o outro sem qualquer juízo moral, isso é, se tratar de conceitos como certo ou errado, feio ou bonito, já que são conceitos subjetivos.
Assim, depois de formada a imagem – ou seja, depois que a letra “cria” a imagem em nosso imaginário como é o caso de “Eu tô na rua de bombeta e moletom” –, ela busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens a qual estamos acostumados. Em outras palavras, a imagem poética traz a condição do que é o “outro” — antes de trazer qualquer juízo moral sobre o outro – sem fazer uso de julgamentos se “bombeta” e moletom são feios ou bonitos, se são elegantes ou se não são elegantes. O simples fato de colocar esses objetos e ambientes no espaço de enunciação faz com que fixemos os olhos naquelas letras e nos perguntemos: “por que isso ocupa aquele lugar?”
Confira no trecho a seguir um exemplo:
"Um dia um PM negro veio embaçar
E disse pra eu me pôr no meu lugar"
A imagem poética é retratada através da narrativa de características importantes de um personagem ou pessoa para o eu-lírico que conta sua história, assim a caracterização "Um dia um PM negro" se relaciona com tom poético na música, pois o verso além de criar imagem, também é rimado com o final do próximo trecho “E disse pra eu me pôr” que contém elementos de um gênero lírico. O mesmo acontece no trecho a seguir:
"Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto
O cara cheira mal, azia, sente medo
Muito loco de sei lá o que, logo cedo"
Neste trecho, Brown descreve como se encontra o sujeito que ele faz referência. Através de "dente tudo zuado", "o cara cheira mal, azia, sente medo" e "muito louco de sei lá o que, logo cedo" entendemos a construção descrita da imagem por dentes mal cuidados, olhar de medo por estar fazendo o uso de substâncias ilícitas. E poética por estar sendo rimada em "ponto" com "conto", "medo" e "cedo", essa, portanto passa a ser uma imagem poética.
Nesse sentido, os quatro pretos mais perigosos do Brasil jamais poderiam ser subestimados por não cumprirem com as teorias literárias em suas canções. Por isso, se faz necessário ressaltar o motivo do título e a afirmação de serem os quatro pretos mais "perigosos" do Brasil. Através das canções do grupo, a vivência periférica é retratada e o senso comum é desconstruído a cada verso cantado. Um senso comum que é categoricamente, popular e culturalmente aceito, mas que não garante a sua validade ou invalidade frente à concretude das coisas. Podemos ver essa característica neste trecho:
"Vai de bar em bar, de esquina em esquina,
Pegar cinquenta conto, trocar por cocaína"
Nele, alguém que não tem familiaridade com a linguagem ou não há conhecimento prévio sobre a temática trataria toda a criação artística e informativa da canção como uma apologia ao crime ou ao uso de drogas, como comumente é taxada. Levando em consideração de que o senso comum é movido, geralmente, pela opinião subjetiva, e durante a época 1997 temos um Brasil que recém-aprovou a "Constituição Cidadã", e por ter sido concebida no processo de redemocratização, iniciado com o encerramento da ditadura militar no Brasil (1964-1985); entendemos porque uma opinião categoricamente popular e distante da realidade daquele ambiente aceita não ver aquela realidade e aquela cultura, sobretudo periférica, como afirmação de uma resistência cultural orgulhosa por meio das tratativas de temas da “quebrada”. Esse movimento de exclusão a tudo que vinha da periferia fez com que os Racionais estivessem a todo momento à margem da sociedade e mesmo tempo, tentassem a todo momento por meio de suas músicas, impor sua presença em um Brasil de concepções racista, excludentes e semiescravocratas.
Com o sucesso grande das músicas do grupo, os veículos de comunicação e a mídia queriam ter a presença dos Racionais em seus palcos e entrevistas. O grupo logo adotou uma postura antimidiática, optando por não trocar sua imagem somente pelo dinheiro, ressaltando o posicionamento extremamente político do grupo frente às pressões midiáticas, levando à tona que eles não estariam presentes em qualquer lugar apenas por moeda de troca. Para além disso, a autodenominação dos quatro: o "perigo" está em conseguir mobilizar um gigantesco exército de brasileiros, para quem as letras batem no peito com força e sentimento de legitimidade.
Em uma entrevista dada à Rolling Stones em 2013, na qual os quatro integrantes participaram, Ice Blue afirmou: “Esse negócio de não sermos milionários sempre intrigou as pessoas. Ninguém entendeu essa base de primo, de ter os caras como irmãos”. Ele conta que, anos atrás, uma gravadora lhes ofereceu contrato de R$ 4 milhões, mais um apartamento no Rio de Janeiro para cada um, em troca de sua fidelidade. Oferta semelhante partiu de uma emissora de TV, que queria o grupo em sua gravadora e em seus festivais. Blue sustentou que aquilo não os representava: “Não nos empolgamos achando que o dinheiro iria mudar nossa vida. Se aceitássemos, não atingiríamos o que queríamos atingir. ” Essa fala sugere que o quê eles queriam com chegar à mente de “50 mil manos” era empoderar negros, pobres e favelados. “O RAP fez mudar muita coisa – ensinou o cara a não ter vergonha de onde mora, do cabelo, da cor, a poder falar da sua quebrada”, avalia Blue. “Hoje, você vê qualquer moleque falando que mora na favela de peito aberto, mesmo que não more. ” E também disse ao negro que é preciso estudar e se cuidar, completa KL Jay. “Racionais é utilidade pública”, diz o DJ, o mais passional e radical da família.
Diante disso, concluo que quando Blue afirma que o RAP fez mudar muita coisa dentro de uma perspectiva de afirmação cultural periférica, passa a ser levado em consideração a ressignificação das palavras, que se tem por base o jogo de relações próprias do idioma que falamos, é um “cabo de guerra natural” sobre a legitimidade das vozes e circundamento de espaços onde elas podem ser legitimadas. Desta forma, a partir de estatísticas, que tem a função passar adiante a informação “oficial” isenta da ação do grupo musical, esta canção pode ser retratada como texto não literário, embora seja coberto de lirismo, ela está informando estatísticas da época de 1997, correspondendo ao que é factual e atingindo o texto não literário, que segundo Proença "(...). Vincula-se a uma verdade de correspondência."
Por entender a canção como texto literário, os Racionais nos mostram o quão poderoso são artisticamente construindo metáforas, antíteses e onomatopeias fora do comum com ritmos entoados de forma a dialogar com as remixagens de Jazz, Funk, Blues que KL Jay produz. Portanto, este cunho de texto literário que muitas vezes o grupo revela, dialoga com o que pensa o professor Proença, que afirma que:"(...) Nosso entendimento do que nele se comunica passa a ser proporcional ao nosso repertório cultural, enquanto receptores e usuários de um saber comum." O que nos permite pensar que começar a entender a cultura periférica de fato, é ter conhecimentos profundos de uma subjetividade, uma vivência, um pensamento, uma atitude e posicionamentos, que existem e não podem ser excluídos perante ao meio social.
Os conceitos de O ser e o tempo da poesia, livro de Alfredo Bosi, também foi apresentado nas letras dos Racionais, pois assim como em “Capítulo 4, Versículo 3”, o grupo cria versos retratando situações com detalhes, colocando o ouvinte no mesmo cenário que por muitos são entendidos como "violentos", mas que têm por princípio apenas retratar e criticar vivências cotidianas de jovens periféricos. Há décadas, a violência ou agressividade está apenas na forma de como eles retratam a imagem poética como modo de apreensão do mundo, haja vista, que possuem estrategicamente muita personalidade nas letras do grupo, mexendo com o imaginário de quem ouve.
* Raul Sales é estudante de Letras, poeta, educador produtor cultural e morador da Zona Leste de São Paulo. Ele foi um dos entrevistados para a edição de primavera da revista virtual da Frentes Versos, a Discêntrica.
Leia a entrevista de Raul, "Até onde soa o verso" e outros conteúdos da última edição clicando aqui.
Você também pode ouvir a entrevista na integra na Antena, o podcast da Frentes Versos, clicando aqui.
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