ESPECIAIS
Diogo de Hollanda*, especial para Frente & Versos
Imagem/divulgação
Em um ensaio publicado em 2009, o escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez faz uma pergunta que muitos de nós já nos fizemos: o que nos leva a passar tantas horas da vida lendo histórias inventadas? A explicação, segundo ele, está no feitiço que a literatura exerce, um feitiço talvez único, que nos permite viver as vidas que não pudemos viver. O leitor de ficções, diz, é “um inconformado, um rebelde, e a razão de sua rebeldia e seu inconformismo é a insuportável camisa de força da vida humana: o fato de esta vida ser apenas uma – ou seja, de não haver vida depois da morte –, e de ser, além disso, apenas uma – ou seja, de não podermos ser mais de um homem ao mesmo tempo”.
Vásquez exemplifica: “Não podemos ser homens e ao mesmo tempo mulheres, fiéis e ao mesmo tempo infiéis, ateus e ao mesmo tempo crentes: mas podemos imaginar que somos, e a leitura de uma boa ficção seria, então, uma experiência de imaginação dirigida, ou uma experiência em que uma imaginação alheia (uma imaginação mais rica, com maior capacidade associativa do que a nossa) nos leva a esses lugares em que não estivemos.”
Para o leitor de literatura, este deslocamento de si é um ato de sobrevivência, como abrir uma janela numa situação de asfixia. Em um pequeno vídeo disponível no YouTube (“Motivos para leer”), o argentino Martín Kohan, um dos grandes escritores de seu país, lembra a perplexidade que sentiu em uma viagem na juventude, quando viu que o passageiro ao lado havia passado mais de 12 horas olhando para o nada, sem ler um único instante. A leitura, para Kohan, é “um desses dispositivos que combinam perfeitamente um efeito de companhia eterna” com “uma base de solidão, de deliciosa solidão”.
Lemos sozinhos, mas nos sentimos sempre menos solitários. E, nas conexões que estabelecemos, vencemos o tempo e o espaço. Conseguimos nos emocionar com personagens os mais distantes de nosso contexto: uma menina pobre de Moçambique, um comerciante de quimonos no Japão, uma catadora de latas numa favela paulistana da década de 1960. Nos imaginamos outros e nos colocamos no lugar dos outros. É o que faz da literatura uma arte de “empatia radical”, como diz o escritor irlandês Colum McCann. O que mais poderíamos desejar em um momento histórico como o nosso, em que a diversidade se vê atropelada por discursos de ódio e intolerância?
Foi por isso representativa a manifestação dos eleitores que foram votar com um livro no segundo turno. Em um artigo publicado no “Suplemento Pernambuco”, as pesquisadoras Regina Dalcastagné e Rosilene Silva da Costa, da Universidade de Brasília, disseram que o livro representou nas eleições “o símbolo vivo da inteligência, da diversidade, da educação, do pacto de resistência e, até, do amor que, esperamos, um dia realmente há de vencer o ódio”.
Em um levantamento informal com 8.7314 usuários do Facebook, as duas descobriram que Paulo Freire foi o autor mais levado às urnas, seguido por Jessé Souza e José Saramago. A relação de livros foi encabeçada por duas obras de Freire – Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia –, trazendo na sequência A elite do atraso, de Souza, Brasil: nunca mais (projeto coletivo que aponta violações cometidas pela ditadura militar) e Ensaio sobre a cegueira, de Saramago.
Infelizmente, por distração, acabei não aderindo ao gesto, mas fiquei pensando na escolha que teria feito. O mais provável é que infringisse as regras e levasse não apenas uma, mas duas obras extraordinárias que li nos últimos meses: a coletânea de contos “Amora”, da autora gaúcha Natália Borges Polesso, e “Garotas mortas”, da argentina Selva Almada. Escritos e protagonizados por mulheres, são livros a meu ver imprescindíveis para promover a empatia nos dias atuais.
*É jornalista, tradutor, e professor da PUC-SP.
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